Nem paz, nem guerra

O problema principal da nova Estratégia de Segurança Nacional é o Presidente dos Estados Unidos. Os suspeitos do costume perguntam se Trump leu o documento.

O Presidente Donald Trump apresentou a sua Estratégia de Segurança Nacional, o documento oficial que define as prioridades da estratégia norte-americana, particularmente relevante numa fase em que prevalece uma incerteza geral sobre a política dos Estados Unidos.

O propósito da estratégia norte-americana não se alterou desde o fim da Guerra Fria: a principal potência internacional quer consolidar o primado dos Estados Unidos, que resulta da sua preponderância política, económica e militar, assim como da sua capacidade para impedir a formação de uma coligação contra-hegemónica. A nova Estratégia de Segurança confirma essa linha de continuidade fundamental, mas muda o paradigma da preeminência norte-americana, as suas prioridades e a nomenclatura dos espaços regionais na política externa dos Estados Unidos.

O realismo conservador - um “realismo com princípios”, diz o documento - substituiu o liberalismo multilateralista que prevalecia na retórica da estratégia norte-americana. A ordem liberal internacional, dominada pelos Estados Unidos e pelos seus aliados democráticos e aberta à integração das novas potências, passou à história perante o regresso da competição estratégica entre os Estados Unidos e a China e a Rússia, que representam uma “visão do mundo repressiva” e põem em causa “o poder, a influência e os interesses” da principal potência internacional à escala global.

Nessa nova fórmula de “competição permanente” - um estado indefinido entre a guerra e a paz - os Estados Unidos têm de estar preparados para mobilizar todos os recursos e manter, designadamente, o domínio da economia de inovação e da energia, que lhes asseguram vantagens competitivas cruciais. A modernização das Forças Armadas e a capacidade para responder aos desafios de uma “dissuasão mais complexa do que na Guerra Fria”, garantem que os Estados Unidos podem impor a “paz pelo poder” - “Peace through strength”, a palavra-de-ordem do Presidente Ronald Reagan, recuperada na última versão da Estratégia de Segurança. Os aliados - a NATO, o Japão - “amplificam o poder” dos Estados Unidos.

No passado, com os presidentes Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama, a China e a Rússia eram “parceiros estratégicos”: passaram a ser classificadas ambas como “rivais” e como “potências revisonistas”. A mudança é significativa e, simultaneamente, ambígua. Desde logo, a China e a Rússia são descritas como competidores estratégicos, adversários mais do que rivais. Por outro lado, o documento vinca a natureza revisionista das duas potências ressurgentes: a China e a Rússia querem “um mundo contrário aos valores e aos interesses dos Estados Unidos”. Por último, a Estratégia de Segurança define dois rivais, sem escolher qual é o adversário principal.

Essa questão não é irrelevante, nem no quadro estratégico, nem diplomático. A tradição clausewitziana manda concentrar as forças numa única frente e esse dogma da diplomacia prussiana costuma ser respeitado na cultura estratégica dos Estados Unidos: a Alemanha foi o adversário principal na II Guerra Mundial, a União Soviética na Guerra Fria, as redes terroristas pan-islâmicas depois do “11 de Setembro”. Nos últimos anos, a China foi reconhecida como a única potência que podia vir a pôr em causa o primado dos Estados Unidos e, nesse sentido, parecia ser, à partida, o candidato mais forte ao lugar de “competidor estratégico”, que, afinal, tem de partilhar com a Rússia, mais preparada para intervir militarmente em conflitos periféricos do que o seu parceiro oriental.

De certa maneira, a fórmula dos dois rivais é mais realista do que a escolha de um único  adversário principal. A “bipolaridade assimétrica” entre os Estados Unidos e a China é uma visão prospectiva, enquanto a Rússia tem uma capacidade concreta para pôr em causa as posições norte-americanas na Europa e no Médio Oriente. A ambiguidade estratégica é uma forma de adiar uma decisão definitiva na escolha entre os dois competidores estratégicos dos Estados Unidos, que são, historicamente, os melhores aliados e os piores inimigos um do outro.

Por último, a Estratégia de Segurança Nacional inova na nomenclatura regional. A ordem hierárquica dos espaços continentais não mudou nos últimos dez anos: a Asia Oriental precede a Europa Ocidental, enquanto o Médio Oriente é relegado para a terceira posição. O princípio de equilíbrio é o mesmo há mais de 20  anos: os Estados Unidos querem impedir que qualquer das regiões internacionais possa ser dominada por uma única potência, o que nem sempre é fácil.

A “Asia-Pacifico”, entretanto, foi substituida pelo “Indo-Pacífico, um conceito alargado que pode integrar a India - classificada como um “parceiro de defesa” – no arco das alianças americanas que cerca a China. A Europa mantem a sua posição relativa – “uma Europa forte é um interesse vital dos Estados Unidos” – com referências minimalistas à NATO - mencionando expressamente a vinculação dos Estados Unidos à clausula de segurança colectiva – e à União Europeia. O Médio Oriente, não obstante os riscos de escalada regional, a classificação do Irão como um “regime renegado” e o reconhecimento da ameaça das redes terroristas islâmicas, não merece mais do que uma posição subalterna na hierarquia das prioridades regionais norte-americanas.

O problema principal da nova Estratégia de Segurança Nacional é o Presidente dos Estados Unidos. Os suspeitos do costume perguntam se Trump leu o documento: a intervenção do Presidente na sua apresentação formal moderou a dureza da Estratégia de Segurança em relação à Rússia e à China, sublinhando os méritos da  concertação entre as grandes potências na neutralização das redes terroristas e na contenção da Coreia do Norte. Nesse sentido, para o bem e para o mal, a imprevisibilidade de Trump vai continuar a prevalecer sobre as orientações definidas na sua primeira Estratégia de Segurança Nacional. 

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