Um remédio para reforçar o centralismo

O que não faz sentido é manter tudo como está, onde um centro único se arroga pensar e decidir por tudo e todos.

A confusão do Infarmed podia ser apenas mais um episódio de um Governo que se atordoou no drama dos incêndios, confundiu na história de Tancos, desorientou com os remoques do Presidente-Rei e perdeu o nexo algures entre as pressões dos seus parceiros parlamentares e dos sindicatos. Ninguém aguenta tanta pancada e tanto infortúnio e é por isso que a história da mudança que não é mudança do Infarmed para o Porto é mais do que uma trapalhada. É um desastre político que terá consequências. Daqui para a frente será ainda mais difícil a este ou a qualquer outro Governo dar passos no caminho da desconcentração e da descentralização. A macrocefalia da administração pública alimenta-se disto. Este erro vai ser usado, já está a ser usado, pelo pensamento dominante do centralismo para manter a configuração medieval do Estado que amarra o país à ineficiência da burocracia, ao clientelismo da corte e à venalidade dos interesses instalados.

O Governo de António Costa é sem dúvida o Governo que nas últimas décadas mais se preocupou em olhar a sério para o país como um todo. Viu o que não podia deixar de ver: que um país com uma cabeça gigantesca e um corpo anémico não funciona. As suas estratégias para a descentralização pecavam por não mostrarem coragem para assumir que a receita para a criação de uma administração pública moderna não exige nada de novo – apenas o regresso à regionalização administrativa prevista na Constituição e banalizada pela Europa fora. Mas, suspeitando que essa batalha era demasiado onerosa, António Costa e o seu ministro Eduardo Cabrita tentaram um atalho para que, ao menos, alguma coisa pudesse mudar. O país interior frágil, abandonado e mal gerido revelado pelos incêndios deu uma boa ajuda aos seus propósitos.

É neste contexto que surge a ideia de trocar Lisboa pelo Porto para avançar com uma candidatura à Agência Europeia do Medicamento. Depois, é com este espírito que o Governo tenta compensar a derrota na Europa com a transferência do Infarmed. O problema é que, agindo como um grupo de adolescentes sem experiência e sentido de responsabilidade, o Governo avançou ao arrepio do que se exige em qualquer mudança estrutural. Não produziu estudos consistentes. Não concebeu uma estratégia global. Não explicou o sentido de urgência ou de necessidade da sua medida. Não promoveu um mínimo de negociação política e laboral. Foi tudo feito de rompante, de forma voluntarista, deixando um rasto de fragilidades no processo de decisão capaz de fazer corar o mais pueril dos aprendizes de política.

Até o ministro da Saúde, até agora uma figura sólida e sensata, foi arrastado no vendaval da imprevidência e da ligeireza: um dia, pede à presidente da Infarmed que o “ajude” a cumprir a decisão de levar o Infarmed para o Porto; e três dias depois, numa reunião com os trabalhadores, diz que não há decisão nenhuma, apenas uma “intenção”. Pelo meio, falou de estudos que ninguém conhece, citou planos inscritos na candidatura do Porto à Agência europeia que ninguém vislumbra. A cada incongruência, a promessa foi-se esvaziando pelo ridículo. Os 70% de quadros e funções que deveriam ser transferidos para o Porto são hoje resumidos a uma sede de fachada. Ninguém acredita mais em mudança alguma.   

Tudo isto seria risível se as anedotas não servissem por vezes para desqualificar boas intenções e para demolir coisas sérias. Foi o que aconteceu. Os discursos do centralismo ganharam ânimo. E as reacções absurdas dos que consideram esta discussão como uma mera extensão de um FC Porto-Benfica fizeram-se ouvir como que a provar que, numa questão crucial para o país, a racionalidade é um bem escasso. Como aconteceu no debate da Regionalização, a caricatura, a demagogia, o medo dos fantasmas e a cegueira da clubite são activos tóxicos que alimentam a inércia do centralismo. Não dizem já os funcionários do Infarmed que uma mudança para o Porto comprometeria o abastecimento de medicamentos?

Era bom que se percebesse que está em causa não é um problema de Lisboa, mas de uma cultura de Estado arcaica, injusta e perniciosa. Um texto de Luis Aguiar-Conraria no Observador basta para provar que toda esta discussão sobre o centralismo excessivo não é um ressabiamento do resto do país contra a capital nem uma imposição dolosa dos lisboetas aos transmontanos ou beirões: é uma herança anacrónica, uma realidade absurda que, tarde ou cedo, com ou sem queixas dos funcionários ou dos interesses instalados, terá de mudar. Se as famílias do Porto, de Bragança ou de Faro assistem ano após ano à migração dos seus familiares para a capital por imposição desse excesso de centralismo, um dia terá de haver o reverso dessa migração. O Estado é de todos, todos estamos interessados na sua eficiência e na sua justa prossecução do interesse público. É aqui que todas as discussões se devem situar.

Seria bom que o Governo pensasse num plano articulado que ajustasse o interesse público com a eficiência, a subsidiariedade e a proximidade. E aí talvez o Infarmed pudesse vir para o Porto porque é no Porto e no Centro que existe o grosso da indústria farmacêutica e alguns dos institutos médios mais prestigiados do país em termos internacionais. Mas se não viesse o Infarmed, viria seguramente a Aicep e o Iapmei, porque é em torno do Porto que estão as pequenas e médias empresas e a base exportadora do país em bens transaccionáveis – o instituto tem sede no Porto, mas sua direcção e os seus quadros estão… em Lisboa. Talvez o Instituto da Vinha e do Vinho fosse para Vila Real. Provavelmente o Tribunal Constitucional poderia ir para Coimbra, o Turismo de Portugal para Faro, o Instituto da Biodiversidade e Florestas para Castelo Branco, o Ifap, que gere os fundos da agricultura, para Beja, a ASAE para Leiria e o Ipimar para Viana.

O que não faz sentido é manter tudo como está, onde um centro único se arroga a pensar e a decidir por tudo e todos. Mudar vai criar problemas? Sim, e o Estado tem o dever de os mitigar – sem criar injustiças para professores ou médicos obrigados a andar com a casa às costas. Mas, a situação actual não causa problemas para milhares de portugueses que por isto ou aquilo têm de perder dias e dias em peregrinações a Lisboa? A falta de alternativas para os jovens beirões ou alentejanos não é um problema agravado pelo círculo vicioso de um Estado que acaba por sugar tudo à sua volta, agravando as assimetrias do país? São perguntas como estas que é importante responder. A menos que aceitemos que o atavismo centralista e centralizador continue a ser o que sempre foi: uma fonte de privilégios e um bloco de interesses que persiste em olhar o país como o quintal das traseiras do seu próprio umbigo.

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