Ibéricos, apesar de tudo

Nos anos 80, um acontecimento como a crise catalã teria suscitado um interesse marginal em Portugal.

A Península Ibérica constitui um todo, dos mais diferenciados e caracterizados; chamaram-lhe já um mundo por si, um mundo de diversidades e contrastes”

Oliveira Martins

Em Portugal, uma das consequências mais interessantes da crise catalã foi a descoberta que também somos ibéricos. Já depois da adesão à Comunidade Europeia, um artigo de Mário Soares, intitulado “Portugal también es Iberoamerica”, de 1992, criava o escândalo nos sectores nacionalistas da política externa e de defesa de Portugal. Raros eram então os portugueses que se afirmavam ibéricos, apesar de o sermos tanto como qualquer espanhol, preferindo alguns o eufemismo “somos peninsulares”.

Os iberistas do século XIX, como Teófilo Braga ou Antero de Quental, tinham visto a sua ideia de uma península diversa, mas federada, tornada impensável pelo ultranacionalismo de Salazar e Franco. Os portugueses tinham ficados sós na península, e sós na Europa e no mundo, enredados na defesa do império africano. Gerações de portugueses foram educadas numa visão da história imbuída de uma narrativa anticastelhana, de que se apropriaram, e muitos educaram os filhos assim.

Nos anos 80, sou tentado a dizer que um acontecimento como a crise catalã teria suscitado um interesse marginal em Portugal. Nessa altura, as relações bilaterais oficiais eram mínimas. Portugueses e espanhóis viviam de costas voltadas, no que era assumido como estratégia lusa, em nome da preservação de Portugal como nação independente na Península Ibérica. O conceito estratégico militar de 1986, ano da nossa comum adesão à Comunidade Europeia, ainda considerava a Espanha como a principal ameaça a Portugal.

Tudo isso mudou com a integração europeia e torna-se evidente na paixão com que os portugueses discutem a questão catalã, ao mesmo tempo que se descobre a força das redes humanas, culturais e económicas que se foram criando entre os dois países, e a Espanha é agora o nosso primeiro parceiro comercial, representando cerca de 25% das nossas exportações. É verdade que ainda são poucos os portugueses que se afirmam ibéricos, mas a questão catalã está a contribuir para que essa realidade se altere. Esbate-se a redução de Espanha a Castela e aparece uma Ibéria de várias nações, algumas das quais, como a Catalunha, gostariam de decidir se continuam ou não parte de Espanha ou se, como Portugal, se autonomizam na península.

Face à questão catalã, os portugueses dividem-se ao longo das mesmas linhas que as restantes nações da península, incluindo a Catalunha. Tal como em Madrid, também há quem queira reduzir a questão, de uma forma simplista, à divisão entre os que defendem a unidade do Estado espanhol e os que simpatizam com a independência. E debatem, debatem e debatem com os independentistas, como se essas duas fossem as únicas alternativas — e também, convém não esquecer, por algum receio da atracção que uma Espanha federal poderia ter em Portugal.

Há muitos em Portugal que não se reveem nessa bipolaridade, que procuram outras variáveis ou que pura e simplesmente se abstêm. Creio que há uma bipolaridade muito mais significativa e decisiva — aqueles para quem os interesses dos Estados são o cerne das suas preocupações enquanto cidadãos e aqueles que advogam que os direitos dos cidadãos são superiores aos interesses dos Estados. Para os que têm uma visão do mundo baseada nos interesses dos Estados, a unidade de Espanha sobrepõe-se aos direitos dos cidadãos da Catalunha — e os interesses do Estado português estão necessariamente numa defesa do Estado espanhol. Para estes, quando o Estado recorre à força excessiva, como no 1 de outubro, tal não será, no melhor dos casos, mais do que um erro tático; quando são presos dirigentes políticos e civis pacíficos, tal será apenas um possível erro judiciário e nunca as consequências da recusa de uma solução política para a questão catalã.

Para outros, a proteção dos direitos de todos, incluindo os dos catalães, é a primeira responsabilidade do governo espanhol. Uma responsabilidade que não releva só dos compromissos assumidos de defesa dos direitos humanos, mas que é condição para a preservação da unidade de Espanha. Para estes, não estamos condenados à frieza dos interesses dos Estados, à raison d’Etat que subalterniza os direitos e, muitas vezes, a própria razão. A questão catalã põe em relevo, uma vez mais, o desafio fundamental, não só da Espanha e da Península Ibérica, mas também da Europa — o de construir uma Europa democrática e federal, de que a “Europa das regiões”, institucionalizada com o Tratado de Maastricht, tem sido vista como um dos blocos.

Numa Europa cidadã, a Península Ibérica, na sua enorme diversidade, um “mundo por si” de que falava Oliveira Martins, terá um papel muito significativo. Um Portugal aberto ao mundo, com a sua idiossincrasia atlântica, uma Espanha nação de nações, com sensibilidades diversas, a que a Catalunha traz uma inegável e possivelmente singular dimensão mediterrânica, são imprescindíveis num momento em que o sonho da ordem internacional de paz dos anos 90 parece tão distante.

Temos de deixar de olhar para a Catalunha pelo prisma unívoco da bipolaridade unidade do Estado ou independência. A alternativa é a dicotomia sociedades abertas ou nacionalismo sectário. O que há de específico na questão catalã é que o seu nacionalismo “cívico”, ao contrário do polaco, do húngaro, do de Marine Le Pen ou mesmo da ETA, não é étnico e é compatível com um projeto espanhol e europeu.

A Catalunha é talvez a nação da Europa onde se fala melhor a língua do Mediterrâneo. A Catalunha é uma região aberta, com cerca de 7,3% da população muçulmana. Não é por acaso que Barcelona foi palco da maior manifestação europeia em defesa dos direitos dos refugiados: a 18 de fevereiro de 2017, milhares de catalães desceram à rua sob o lema “Volem acollir” (queremos acolher), ao mesmo tempo que exigiam que o Governo espanhol acolhesse mais refugiados. A Espanha tem de se relembrar que é muito mais que Castela, não pode continuar a negar o desejo da maioria esmagadora dos catalães em terem um referendo legal sobre a independência. Madrid deve assumir que é a capital de uma extraordinária experiência de nação de nações, um modelo para a resolução pacífica e democrática da necessidade que muitos sentem de afirmar as suas identidades.

Como ibéricos e europeus, temos um interesse vital na superação do mal sectário que ameaça a Espanha: fora da Catalunha, um sectarismo que se expressa no ódio aos catalães e na diabolização dos seus dirigentes; na Catalunha, numa precipitação revolucionária que desrespeitou os direitos dos que querem fazer parte de Espanha. A Catalunha não pode ser um Portugal do passado, isolado do resto da península e da Europa, por isso a sua independência, a realizar-se, deve assentar num referendo legalmente organizado e aceite por todos.

A União Europeia, para quem o sectarismo é o mal mortal que pode levar à sua perdição, tem um interesse vital na boa resolução da questão catalã. Nós, portugueses e ibéricos, para isso podemos e devemos contribuir.

O autor escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 14 comentários