Os “raios de sol” na noite da Revolução

Na noite dos 100 anos da Revolução socialista, milhares de comunistas juntaram-se em São Petersburgo numa manifestação de crenças e nostalgia. Repetiram slogans, comemoraram e partiram. O tempo tende a esvaziar a herança desse ano turbulento. Mas há lições que não se apagam.

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O cruzador Aurora, que disparou o tiro que anunciou o início da Revolução de Outubro, nas celebrações´no porto de São Petersburgo ANATOLI MALTSEV/EPA

Ao fim da tarde do dia em que se comemoraram os 100 anos da Revolução Socialista, uma mulher com os seus 70 anos caminhava imperturbável entre a agitação das bandeiras vermelhas e as palavras de ordem de milhares de manifestantes. No ombro transportava um pequeno gravador de onde ecoavam marchas revolucionárias de um tempo perdido. Ao pescoço trazia dependurado um enorme cartaz com um poema comparando a revolução a “um raio de sol”, invocando Lenine e o seu exemplo, defendendo a sua herança como garantia de que, no futuro, “o poder vai ter de pagar” a destruição do seu sonho e do sonho dos que, ao seu lado, vindo de vários países, continuam a acreditar no poder da Revolução.

Juan veio com 17 camaradas de Santiago do Chile porque, ainda mais do que comunista, se considera “revolucionário” e lamenta que “haja cada vez menos leninistas”. M. veio da Turquia (ela recusa-se a dar o nome, "no meu país o Partido Comunista é ilegal”) com mais sete camaradas, porque acredita que as teses de Lenine são as que melhor respondem aos interesses e necessidades de todos os trabalhadores. Lúcia Skromov, 71 anos e 59 de militância no Partido Comunista do Brasil, juntou-se em Madrid a uma sobrinha e ambas viajaram para São Petersburgo porque sentem o dever de “agir”, agora que “o imperialismo está a crescer”, mas também para visitar os lugares do culto revolucionário espalhados pela cidade que bastam para lhe “calar a alma”.

Comunistas nepaleses, alemães, russos, sul-coreanos a pedir a saída das tropas americanas do seu país, venezuelanos, checos ou italianos foram-se juntando numa rua lateral à Estação da Finlândia. As autoridades jamais autorizariam uma concentração no Palácio de Inverno, a sede do mundialmente conhecido Museu Hermitage, o lugar emblemático do golpe que derrubou um “governo burguês” e instalou uma “ditadura do proletariado”. Com o palácio Smolny, o centro de operações a partir do qual os bolcheviques lideraram o assalto ao poder, fechado, a alternativa estava na outra margem do rio Neva, onde a memória revolucionária ainda encontra âncoras para se exercitar.

O ponto de partida foi a estação ferroviária onde Lenine desembarcou vindo de 17 anos de exílio em 3 de Abril de 1917. Daí, os manifestantes caminharam pela ponte Liteiny que ele atravessou clandestinamente na noite de 6 de Novembro, disfarçado com uma cabeleira e um fato de operário (era procurado pelas autoridades), antes de se dirigir ao bastião bolchevique. No fim, concentraram-se num comício junto ao cais onde está ancorado o cruzador Aurora, que deu o tiro de aviso para o avanço da operação. Fortemente guardados pela polícia, os manifestantes caminharam entre gritos contra o czar, contra Putin, contra o capitalismo, o imperialismo e o fascismo, reclamaram terras para os camponeses e o controlo operário das fábricas, lembraram que “quem deu direitos sociais aos russos foi Lenine” e invocaram as glórias soviéticas “na ciência, na tecnologia, na medicina, na engenharia”. Depois de 1991, sublinharam, “tudo isso acabou”. Hoje, anunciaram, está na hora de recomeçar tudo de novo.

Entre todo o aparato e a ritualização revolucionária dos militantes trajados com casacos pretos de cabedal ou fardas dos guardas vermelhos erguendo bandeiras de veludo religiosamente conservadas com os símbolos de Outubro, aquela mulher com o poema ao peito parecia um personagem fora de cena. Havia muitos jovens, ora de ar agressivo nos seus casacos pós-punk, ora de sorriso aberto a cantar a Marselhesa ou a Internacional. Os italianos eram os campeões da festa. Mas, estas manchas de juventude eram talvez insuficientes para garantir um futuro auspicioso à causa. A maioria dos manifestantes era claramente gente de outra geração, com outra ligação a Lenine.

Eram comunistas das revoluções anticolonialistas de África, mobilizados no combate às ditaduras sul-americanas, gente criada sob a égide do mundo previsível e rígido da era soviética, alemães ou russos corpulentos moldados no universo da indústria pesada que hoje jaz sob a ferrugem na periferia de cidades como Volgogrado. Todos caminharam e deixaram no ar sonhos, promessas e memórias das realizações que cultuam. Não deixou de haver gestos comoventes, com abraços, apelos à união dos “proletários de todo o mundo”, saudações feitas num código gestual conservado há um século, deferências a heróis que, se tinham Lenine no cume da hierarquia, abraçavam também Estaline, Sverdlov ou outras figuras da ortodoxia soviética dos primeiros anos. Mas não houve lugar para euforia. A celebração fez-se pelo acto de estarem ali.  

Depois do final do comício, houve um pequeno arraial, breves manifestações aqui e ali, e São Petersburgo pôde então regressar à sua vida normal. A manifestação fora apenas um pequeno sobressalto numa cidade que, mesmo cheia de bairros, ruas, avenidas, praças, estações de metro, estátuas e outras memórias de Lenine, se esforçou por passar ao lado dos 100 anos da Gloriosa Revolução de Outubro (na época vigorava na Rússia o calendário juliano, 13 dias atrasado em relação ao gregoriano). Numa das pontes sobre o Neva ainda houve quem colocasse um cartaz a dizer “Lenine, acorda”, logo retirado pela polícia. À superfície, São Petersburgo passou ao lado do seu mais importante acontecimento histórico – talvez só disputado pelos 900 dias de cerco alemão na II Guerra Mundial.

No Museu Hermitage, o velho Palácio do Imperador e, depois de Julho de 1917 do Governo Provisório que os bolcheviques derrubaram, uma exposição recorda esses dias com documentos oficiais, trajes das princesas, objectos pessoais, filmes e fotografias. No Museu Histórico, outra exposição regressa a esse tempo feito de dois momentos: o do sonho da conquista do poder para os soldados, operários e camponeses e os dias a seguir a 7 de Novembro, quando os bolcheviques fecham jornais da oposição, ilegalizam o partido Constitucional Democrata e fizeram tábua rasa dos resultados das eleições para a Assembleia Constituinte nas quais obtiveram 26% dos votos (contra 38% dos Socialistas Radicais). “Os bolcheviques não sabiam quanto tempo iriam ficar no poder. Quando o tomaram, o que estava em causa era a sua sobrevivência, mesmo física”, nota Nikolai Bogomazov, um jovem professor de História (tem 31 anos), da Universidade Estatal de São Petersburgo. O caminho da ditadura, do Terror Vermelho e da Guerra Civil que venceriam dois anos depois estava traçado.

Mais do que a Revolução em si, o que divide hoje os russos (e o mundo) é a oposição entre as expectativas da Revolução e os seus resultados. “Lenine foi um grande político, podemos discutir o lado bom e o lado mau da sua acção, mas não haja dúvidas que foi um grande político”, diz Bogomazov. Discutir o seu legado, e as consequências que teve para a Rússia e para Europa é, para este historiador, “uma obrigação”. A Rússia mudou radicalmente, mas a Revolução fez como que “toda a Europa se desviasse para a esquerda”, diz Nikolai Bogomazov. O exemplo da tomada do poder por uma facção radical na sequência de uma revolta popular tornou-se um pavor para as democracias liberais. E impulsionou a criação dos Estados Providência.

Na Rússia, porém, essa discussão pouco se viu. Na televisão, estreou uma série dedicada a Trotski que no mês passado foi aclamada em Cannes. Do ponto de vista histórico, a série é “horrível”, diz Bogomazov, mas teve um propósito contra a corrente do jogo. “Na nossa sociedade não estamos acostumados a procurar a verdade”, diz, numa entrevista ao Metro de São Petersburgo, o argumentista da série, Oleg Malovitchko. “Se a nossa série puder provocar debates e discussões sobre se a Revolução foi um bem para todos nós ou uma horrível catástrofe, então eu ficarei feliz”, afirmou Malovitchko. A velha Petrogrado, onde tudo aconteceu, não foi por aí. 

“Não estou contente com a forma como este evento foi comemorado, mas percebo as dificuldades do Governo. Uma comemoração mais intensa deixaria sempre metade da Rússia descontente”, diz Nikolai Bogamazov. Num país com excesso de História como a Rússia contemporânea (a Revolução, o Estalinismo, a Guerra Fria, o “degelo”, o caos pós-soviético, Putin e a Crimeia, e a Síria…), falar de um regime que nasceu de um assalto violento ao poder não é fácil. “O meu avô de 94 anos ainda se importa com o Comunismo. Mas a minha mãe interessa-se mais pelos tempos do czar”, diz Olga. Para os russos da geração formada no estertor do regime soviético, o ideal parece ser meter esses 70 anos do comunismo entre parêntesis. Ou, como pretende o Governo de Putin, depurá-lo da ideologia revolucionária e conservar o seu lado positivo – a vitória na II Guerra Mundial, as conquistas na ciência ou na alfabetização, etc..

Para esquecer esse passado, São Petersburgo tem um enorme desafio pela frente. Depois da queda da URSS, os seus habitantes aprovaram num referendo a mudança de nome de Leninegrado para o seu velho nome de origem, que simboliza o sonho do czar Pedro Grande em voltar as costas ao mundo asiático e bizantino e ancorá-lo no universo das luzes da Europa. Agora, uma comissão de toponímia do município anunciou querer ir mais além, reduzindo ainda mais Lenine e a Revolução da memória da cidade. Mudar o resto “vai ser muito caro e dar muito trabalho”, diz Elena Makeeva, professora de Economia (e estudante de português). Há bairros com nove ruas soviéticas – a número um, dois, três e por aí fora. Todos os heróis da Revolução estão na toponímia local. No bairro de Elena há até uma rua com o nome do primeiro tradutor de Marx para russo (German Lopatin).

Com a passagem do tempo, essa operação de apagamento de um passado concreto será mais fácil. As palavras de Trotski para os seus oponentes numa célebre reunião do Soviete de Petrogrado ameaçam colar-se ao seu legado: parecem cada vez mais condenadas ao “caixote do lixo da História”. Haverá sempre militantes a acreditar no poder transformador da revolução. Haverá sempre quem, como aquela senhora de idade, acredite nos “raios de luz” da astronomia simbólica do leninismo. Ou quem não encontre outra resposta às contradições do mundo entre pobres e ricos, entre supostos exploradores e explorados e veja na Revolução a única forma de sonhar com uma “sociedade sem classes”. Haverá também quem, como Elena Makeeva, continue a usar a estrela vermelha que resiste desde os tempos do socialismo na sua árvore de Natal, não como uma devoção, mas apenas como um sinal de esvaziamento do seu poder simbólico.

Diluída nos antagonismos que o seu próprio radicalismo germinou, a Revolução seguirá a sua marcha lenta no caminho do esquecimento na velha Petrogrado. Há, no entanto lições que ficam para sempre. Nikolai Bogamazov invoca uma em especial: “Depois de 1917 os governos na Europa aprenderam que é impossível governarem se ignorarem as necessidades do seu povo”. 

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