Dezenas de detenções na elite saudita são início de uma nova ordem no país

É ainda cedo para perceber o potencial da medida ditada pelo príncipe herdeiro. Um dos detidos é o multimilionário mais famoso do país.

Foto
A notícia das detenções de 11 príncipes sauditas, quatro ministros e dezenas de membros da elite são "um terramoto" no país FAISAL AL NASSER/Reuters

Este fim-de-semana viu “o início de uma nova ordem na Arábia Saudita” (disse o académico Fawaz Georges), “nada menos do que um terramoto” (disse a BBC), uma acção de alguém “que arrisca numa escala raras vezes vista no Médio Oriente” (The Guardian). O príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, ordenou a detenção de 11 príncipes, quatro ministros e ainda dezenas de outros responsáveis da elite saudita, de madrugada e sem pré-aviso. A escala causou surpresa, mesmo vindo de uma figura que tem concentrado poder como nenhum outro príncipe herdeiro antes o fez.

Uma das razões para a surpresa desta acção é o facto de entre os detidos, acusados por um recém-criado organismo anticorrupção criado pelo rei, que o entregou ao príncipe herdeiro, estar um dos homens mais ricos do mundo, investidor em empresas como o Citibank, Twitter, Apple ou Lyft, que, apesar de não ser parte da família real, era um representante informal do país: Alwaleed bin Talal.

Bin Talal é uma personagem no mínimo colorida: processou a revista Forbes por esta lhe ter atribuído um valor de apenas 17 mil milhões de dólares, algo que considerou ser uma avaliação abaixo da realidade, criticou o então candidato Donald Trump no Twitter (chamou-lhe “uma vergonha para a América”, tendo, é claro, uma resposta), e o seu último projecto era comprar um Airbus A380, o maior avião do mundo, e equipá-lo com uma sala de concertos, banhos turcos e estacionamento para o seu Rolls Royce).

Foto
Alwaleed bin Talal, um dos mais ricos homens do mundo Neil Hall/REUTERS

Mas também era conhecida a sua face progressista: promoveu a possibilidade de as mulheres poderem conduzir muito antes de isto ser uma hipótese aceitável (o país anunciou recentemente que o vai permitir), empregou mulheres nas suas empresas, e, enquanto foi casado, a sua mulher não usava véu. Contribuiu ainda para um centro de diálogo muçulmano-cristão da Universidade norte-americana de Georgetown, que tem o seu nome.

Mohammed bin Salman (conhecido como “MbS”) também se apresenta como progressista e tem uma agenda para modernizar a Arábia Saudita – e torná-la capaz de sobreviver à morte anunciada da fonte da sua riqueza, o petróleo. Aliás, as medidas anticorrupção também são justificadas pela diminuição de recursos: com a baixa do preço do petróleo, este já não permite a mesma dimensão de lucro.

O príncipe tem batido na tecla da necessidade de lutar contra a corrupção, “quem quer que sejam os envolvidos, sejam ministros ou príncipes”, afirmou numa entrevista recente. Mas analistas sublinham que estes afastamentos parecem servir o objectivo de MbS cimentar o seu poder: um dos afastados é Miteb bin Abdullah, 65 anos, responsável pela Guarda Nacional, considerado um centro de poder autónomo no país e o único entre MbS e o trono.

Assumindo o controlo da guarda, MbS quebra uma tradição de ter ramos diferentes de poder em ramos diferentes da família real. A sua concentração de poder não tem precedentes – e o facto de poder assumir a coroa ainda jovem dá-lhe uma potencial longevidade no cargo também ela fora do normal.

Há quem veja na acção deste fim-de-semana ecos do “golpe palaciano” de Junho, quando o rei afastou o então herdeiro do trono e ministro do Interior, Mohammed bin Nayef, a favor de MbS.

Vários analistas apontam ainda que na sua actuação MbS está a quebrar outra tradição, a de busca de alianças. “Esta actuação levanta questões sobre o progresso da reforma que está cada vez mais baseado numa acção unilateral do que numa reescrita consensual do contrato social do reino”, comenta James Dorsey, da Universidade de Singapura, ao Financial Times.

Presos no Carlton

A noite foi de “drama extraordinário”, descreve o Financial Times: alguns dos detidos estarão no Hotel Ritz Carlton em Riad, onde ainda há pouco tempo tinham sido apresentados planos para uma nova megacidade a ser financiada por uma operação de venda de activos do reino – incluindo a muito antecipada abertura da petrolífera Aramco que se espera que aconteça no próximo ano.

Havia relatos de que os detidos estavam no hotel sem poder comunicar sequer com seus advogados; há outros relatos de que no aeroporto de Gidá aviões privados foram impedidos de levantar voo, possivelmente para impedir potenciais fugas do país.

O problema é que uma acção com detenções para reforçar poder, incluindo a de um multimilionário com investimentos numa série de empresas ocidentais e com quem muitas pessoas já fecharam negócios, não é exactamente o que mais dá garantias a investidores internacionais, comenta o diário britânico The Guardian.

Por outro lado, a idade de MbS (apenas 32 anos) e a velocidade e dureza da sua acção noutros palcos também são vistos com alguma apreensão no Ocidente. Foi ele quem, como ministro da Defesa, decidiu intervir no Iémen contra as milícias xiitas, abrindo mais uma frente no confronto com o Irão (o disparo de mais um míssil dos rebeldes iemenitas em direcção ao aeroporto de Riad foi interceptado como outros antes, mas é um sinal de que o conflito continua a ameaçar o país). Foi ele quem quis promover um boicote ao Qatar que teve custos económicos e políticos. 

Foto
Aos 32 anos, o príncipe herdeiro concentra um imenso poder Faisal Al Nasser/REUTERS

Aos 32 anos, o princípe herdeiro é já a voz dominante nas políticas de negócios estrangeiros, económicas e sociais, diz o New York Times. Na família real nem todos vêem com bons olhos tanta concentração de poder, tão cedo.

“Estes acontecimentos vão inevitavelmente reavivar a especulação febril de que o rei Salman, 81 anos, se está a preparar para abdicar a favor de MbS”, diz o editor de Internacional do Financial Times, David Garner. “A Arábia Saudita está a atravessar uma grande, grande transição”, disse, por seu lado, Fawaz Georges, professor de Relações Internacionais na London School of Economics, à CNN. “Ainda vai demorar um pouco até esta nova ordem ficar estabelecida e se tornar clara.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários