Uma alegoria trágica

O que faz de alguém americano? A Estrada Subterrânea acontece num passado estranhamente presente.

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Nuno Ferreira Santos

“Dezasseis anos; era a idade que Cora calculava ter”; nascera numa plantação de algodão na Geórgia, um lugar no qual o único sonho possível a um negro como ela era fugir, mas “escapar aos limites da plantação seria escapar aos princípios fundamentais da existência; impossível.” Cora já ouvira histórias de fuga e da crueldade ilimitada imposta ao fugitivo após a captura, até que um dia alguém lhe sugeriu fugir. O impossível torna-se a partir daí uma obsessão, a de uma ideia de liberdade que vai ganhando corpo para se tornar um organismo vivo modelador da existência.

Cora é uma escrava na América de meados do século XIX e a protagonista de A Estrada Subterrânea, romance de Colson Whitehaed que em 2016 arrecadou o Pulitzer e o National Book Award. A crítica não poupou na adjectivação para qualificar o sexto romance do nova-iorquino de 47 anos: arrebatador, brutal, fulgurante, poderoso, brilhante, pungente, electrizante, devastador. A que se deve tudo isto? A uma narrativa que desmonta a identidade de um país a partir do modo como pôs em prática uma premissa: a de que ser branco num território novo lhe confere o poder sobre qualquer outro povo em nome da grandeza de um país. Os ecos desta premissa fundadora - como a encara Colson Whitehead - parecem hoje muito vivos numa América onde a supremacia branca voltou a ser uma carta que não se esconde no jogo de tonar a América grande. Num romance que se lê como uma aventura, Whitehead conseguiu criar um incómodo muito presente.   

A partir de uma personagem feminina e de uma história mítica acerca da existência de um caminho subterrâneo de fuga que cruzava os estados unindo a imensidão do país, tece uma rede dramática que se lê com o fulgor e o suspense de uma história de aventuras, mas se vai revelando sempre mais do que isso. Da descrição do que é uma plantação no Sul, com as atrocidades e um programa de riqueza associados, à fantasiosa ideia de uma linha de fuga que em muitos pontos se aproxima do que se pode considerar realismo mágico, à oralidade dos contos africanos. É impossível não lembrar Toni Morisson em Beloved como muitos autores que escreveram com base em testemunhos de escravos. Pergunta-se e o que tem isso de novo? É bem escrito, de um realismo perturbante e serve-lhe para o que vem a seguir: a fuga pelo caminho-de-ferro secreto em direcção a um Norte olhado como o sonho dos escravos. Ali a liberdade seria possível. Que liberdade?

Cora conhece as palavras dos abolicionistas, de caçadores de escravos, de cientistas que querem controlar a população negra através da esterilização de mulheres. Sabe de outro tipo de medo, da dimensão da ambição num país que desconhece. “Digo sempre que, se quiserem ver como é esta nação, têm de andar pelos carris. Olhem para fora à medida que forem ganhando velocidade e irão ver o verdadeiro rosto da América”, diz-lhe Lumbly, o condutor do vagão onde viaja no escuro, debaixo do chão.

As palavras de Lumbley passam a ser uma espécie de coro grego na mente de Cora. O engenho de Whitehead está no modo como faz com que o sonho de Cora não seja só mais um e a sua experiência só mais uma entre escravos numa alegoria ao que é a América e o seu sonho sonhado sobre escombros, entre eles o genocídio dos índios americanos que Colson convoca para o seu livro porque também passou por eles o imperativo.

Uma nota: a tradução portuguesa tem falhas e retira poder ao livro.

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