O rei pasmado (e os outros também)

Estamos no século XXI, o Conde Duque de Olivares já morreu, o Franco também e a história não acabou.

Tirando os reis dos contos de fadas, há outros que não devem nada à sua absoluta inutilidade para os altos cargos que detêm ao serviço do povo. Ballester chamava rei pasmado a um desses: tinha visto uma mulher nua num bordel e queria ver também a rainha sem roupa. A santa inquisição fazia-lhe a vida negra.

Outro rei de agora, caixa castelhana de ressonância do mais primário autoritarismo e centralismo, invoca moinhos de vento legalistas e constitucionais para turbinar a poeira onde nos querem confundir acerca do que é a democracia como coisa unicamente pendurada numa constituição e nas leis como se fossem as tábuas do profeta escritas directamente pelo desígnio da divindade, ou isso, ou o caos. Não é. Espanha é um mosaico cultural feito de formações históricas diversas e colado à força pela hegemonia castelhana, a repressão militar, o catolicismo fanático e a mistura dinástica do sangue azul. É escusado agitar os fantasmas românticos do nacionalismo ou admitir que só existe um nacionalismo, que é castelhano e está centrado em Madrid. Estamos no século XXI, o Conde Duque de Olivares — muitos reinos mas uma só lei — já morreu, o Franco também e a história não acabou.

Em 1640, o absolutismo monárquico castelhano perdia Portugal e arriscava-se a perder a Catalunha, os Países Baixos e Nápoles e ainda a procissão vinha no adro. Felipe IV, o gordo, o grande, o rei planeta estava numa embrulhada. Por isso continuava a fazer filhos bastardos.

No complicado xadrez da Europa de então jogava-se a hegemonia entre a França (inimiga de Espanha) e a Inglaterra. Portugal e a Catalunha estavam dentro desse jogo. Sem capacidade para tudo, Madrid apostava na Catalunha, em armas desde Junho do mesmo ano de 1640 e aliada com o rei de França.

E hoje? A Europa transformou-se numa molhada amorfa, politicamente correcta assobiando para o lado com o argumento de que o assunto catalão é um assunto interno. O rei, pasmado com a situação, chove no molhado repetindo a missa dos novos condes duques madrilenos. Os mercados — a única coisa que realmente tem poder — não gostam de instabilidades e porque são muito estáveis, como se sabe, vão fazendo a sua vidinha mudando sedes de bancos e empresas de Barcelona para fora. A política vive, apesar de tudo, e há a rua, as redes sociais, a TV, a imprensa, o Parlamento, a Generalitat, as ramblas, as praças, os votos, a voz.

Não existem assuntos internos no mundo de hoje. Existem apenas assuntos e melhor seria que fossem tratados de maneira menos opaca por políticos que tivessem estatuto para tal. Há muito quem pense que os mercados e as suas mãos visíveis bastam para o povo se governar e que política é ruído. Os mercados são feitos de dinheiro enlouquecido. São perigosos e não deviam andar sós.

O mesmo reino que em 1640 se separou de Espanha — coisa ilegal e anticonstitucional, claro — não quererá oferecer uma plataforma diplomática, um chat, uma mesa, um café e um crema catalana, uma “geringonça”, sei lá, para aclarar assuntos externos e internos, europeus, ibéricos? Porque se queixa depois que a Europa está choca? Porque não ajuda a tentar provar que a Europa existe toda partidinha como sempre?

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