Como uma ideia de 1974 domina agora o debate económico nos EUA

A proposta de reforma fiscal realizada por Trump e que agora começa a ser discutida pelo Congresso traz de volta a questão: pode um corte de impostos pagar-se a si próprio?

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Reuters/Carlos Barria

É num guardanapo, agora guardado no Museu Nacional da História Americana, em Washington, que está a base do debate que irá dominar a política económica nos Estados Unidos durante os próximos meses.

Estava-se em 1974 e um jovem economista, Arthur Laffer, jantava num restaurante da capital norte-americana com um jornalista, Jude Wanniski, e dois membros em ascensão do Partido Republicano, Dick Cheney e Donald Rumsfeld, explicando-lhes a sua teoria: a de que, a partir de um determinado nível, uma descida de impostos faz aumentar, e não descer, a receita fiscal obtida, graças ao impacto muito positivo que gera na actividade económica. No guardanapo de pano, desenhou a agora famosa curva de Laffer e a verdade é que, a partir desse momento, o Partido Republicano começou progressivamente a juntar às suas ideias de conservadorismo orçamental a defesa de políticas agressivas de cortes de impostos. Ronald Reagan, nos anos 80, e George W. Bush, no início deste século, foram os dois presidentes que mais testaram na prática a teoria.

Agora, Donald Trump quer ir ainda mais longe. Baseado nas mesmas ideias expostas por Laffer em 1974 no seu guardanapo, apresentou na semana passada uma proposta, ainda com poucos detalhes, de cortes generalizados nos impostos. A Casa Branca quer cortar o imposto sobre os lucros das empresas de 35% para 20%, baixar a tributação aplicada a particulares que pagam impostos através das suas empresas, reduzir a taxa máxima do IRS dos actuais 39,6% para 35%, subir a taxa mais baixa de 10% para 12% e eliminar o imposto sobre propriedade e o imposto mínimo alternativo. Está prevista também a eliminação de diversas deduções fiscais, simplificando o sistema de impostos.

Com todos estes cortes de impostos, compensados por reduções de deduções ainda não totalmente especificadas, a Administração Trump promete que o défice vai, não aumentar, mas sim diminuir, e logo em um bilião de euros durante os próximos anos. Tudo graças ao impacto positivo que as medidas potencialmente terão no crescimento da economia, no investimento e no regresso de empresas norte-americanas neste momento sedeadas no estrangeiro. A confirmar-se este cenário, seria a teoria de Laffer a passar à prática de uma forma perfeita.

São muitos os que duvidam que isso possa acontecer. Em particular no mundo da ciência económica. São diversos os estudos realizados nas últimas décadas que apontam para que, na experiência passada de cortes de impostos, não se tenha verificado uma aceleração de crescimento tão forte como a desejada. Mesmo economistas como Gregory Mankiw, que presidiu ao grupo de conselheiros económicos de George W. Bush, reconhecem que esperar que a aceleração da economia compensasse todo o efeito da redução das taxas seria pedir demais. “Uma regra razoável, na minha opinião, é a de que cerca de um terço dos cortes de impostos é compensado por via de um crescimento económico mais rápido”, afirmou recentemente ao The New York Times.

Na semana passada, o think tank Tax Policy Center, calculou, com base naquilo que já é conhecido do plano fiscal, que o impacto nas contas públicas nos próximos 10 anos seria um agravamento do défice de 2,4 biliões de dólares, não aceitando a ideia de um muito forte crescimento económico poder alargar de forma impressionante a base fiscal.

Este estudo foi fortemente criticado pela Casa Branca e por vários membros do Partido Republicano, que o acusam de não levar em conta todas as medidas que ainda vão ser anunciadas e de se socorrer de análises estáticas, em vez de análises dinâmicas.

Implícita igualmente na proposta fiscal de Trump está a ideia de que uma redução dos impostos sobre os mais ricos acaba por se transformar também num aumento de riqueza para os mais pobres, por via dos empregos que supostamente são gerados quando os mais ricos ficam na sua mão com mais capital para investir e consumir. É a teoria denominada como “trickle down economics”. Esta ideia sempre foi polémica e muito difícil de comprovar na prática. Agora, com o nível de desigualdade a atingir novos máximos, é ainda mais contestada por aqueles que dizem que a política fiscal defendida por Trump apenas vai agravar o fosso entre mais ricos e mais pobres, algo que estudos recentes defendem ser prejudicial para o crescimento de longo prazo.

Donald Trump, desde que apresentou a sua proposta, tem vindo a repetir sucessivamente que os cortes de impostos se destinam à classe média e não aos mais ricos (incluindo ele próprio), já que irão ser postas em práticas compensações por via da redução de deduções. Mas as medidas até agora conhecidas – como a redução da taxa máxima ou a eliminação do imposto sobre a propriedade - tornam difícil perceber como é que isso será possível. O estudo realizado pelo Tax Policy Center calcula que 50% dos benefícios produzidos pelo corte de impostos vai ser sentido pelos 1% mais ricos da população norte-americana.

Outro estudo, realizado dentro do próprio Departamento do Tesouro em 2012 e entretanto retirado do seu site pela nova Administração, calcula que o IRC produz o seu efeito final em 82% nos detentores do capital das empresas e 18% nos trabalhadores, contrariando a ideia defendida pela Casa Branca de que os trabalhadores serão os principais beneficiados do corte dos impostos sobre as empresas.

Será no meio deste debate económico, que irá ser feito o debate político que verdadeiramente vai decidir o destino da proposta de Trump. E aqui, o sucesso do presidente está, apesar da maioria Republicana no Congresso, longe de ser um dado adquirido. Durante esta semana foram dados os primeiros passos do Senado e da Casa dos Representantes para a eventual aprovação da nova legislação. E já há sinais dos dilemas que o Republicanos vão enfrentar nesta discussão.

Enquanto no Senado se aceita que a proposta de corte de impostos possa resultar num agravamento do défice de 1,5 biliões de dólares nos próximos dez anos, na Casa dos Representantes estipula-se que o efeito orçamental seja nulo no mesmo período. Esta divergência é um espelho das diferenças de sensibilidades dentro de um partido que continua, desde os anos 80, a balançar entre a defesa de uma redução da dívida e a ambição de cortar rapidamente os impostos.

Por isso, nas próximas semanas, aquilo que será debatido, será não só o corte de impostos, mas também a redução ainda mais agressiva das despesas, o que pode tornar ainda menos provável o plano de investimento em infra-estruturas prometido por Donald Trump durante a campanha eleitoral. Entre uma política do lado da oferta, sustentada na ideia de que a curva de Laffer funciona, e uma política keyseniana de mais investimento público, Donald Trump parece, para já, ter feito a sua opção.

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