Os dez dias que entretiveram o mundo

Olho para os EUA e cada vez mais parece que vejo a Turquia de há uns anos, quando cada setor do poder puxava para o seu lado.

Putin diz que perdeu a paciência com os EUA. Achará que Trump é um traidor, e que até como traidor é um inútil. Muitos americanos concordam. 

Mike Pence, vice-presidente dos EUA, anda pelo Báltico e pelo Cáucaso a dizer o contrário do que era alegadamente a posição de Trump no ano passado, mais ou menos por esta altura, quando ainda era candidato. Quando Trump dizia que era tempo para uma melhor relação russo-americana, o que foi entendido por Putin como respeitando à sua velha ambição de usufruir de uma esfera de influência sobre os países pós-sovieticos, Pence aterra na Geórgia e declara o seu apoio à entrada daquele país do Cáucaso na NATO. Quem for capaz de entender os EUA de agora que se aventure a fornecer interpretações.

Quanto a mim, olho para os EUA e cada vez mais parece que vejo a Turquia de há uns anos, quando cada setor do poder puxava para o seu lado: o poder executivo não concordava com o poder judicial, o que os juízes queriam não era o que a polícia fazia, e acima de tudo (ou abaixo) havia a entidade misteriosa a que os turcos se tinham habituado a chamar "o Estado Profundo", uma coleção dispersa de elementos do exército, dos serviços secretos e de irmandades ocultas e conspiratórias. Também hoje nos EUA se ouve falar no Estado Profundo e, pasme-se, com esperança. Numa perfeita inversão de papéis, tal como os republicanos se tomaram de amores pela WikiLeaks para eleger Trump, também agora os democratas contam com o Estado Profundo do FBI, da CIA e do Exército para remover o presidente.

Feridos no seu orgulho, os congressistas americanos extravasam e, lá onde não conseguem uma maioria para fazer passar legislação doméstica, facilmente conseguem uma quase unanimidade para aprovar novas sanções à Rússia. Só que, como nem pensaram em consultar os europeus, acabaram aprovando sanções que põem em causa o fornecimento de gás russo a vários países do centro e do leste da UE, incluindo a Alemanha e a Polónia. Juntando todas as peças, não é difícil de concluir que os próximos tempos serão de arriscada turbulência no mundo.

Foi bom de ver, por isso, que a liderança global que os EUA vêm perdendo com Trump se mantém intocada em ao menos um campo: o do entretenimento. Refiro-me ao espalhafatoso porta-voz que Trump nomeou e despediu em apenas dez dias. Anthony Scaramucci de seu magnífico nome, como se fosse uma personagem retirada de uma ópera bufa. Chegado com o seu estilo de fanfarrão que todos os problemas resolve, uma bela cabeça de gel pontuada por dois olhinhos esgazeados, fazendo promessas de despedir toda a gente que na Casa Branca se portasse mal.

Scaramucci foi breve, demasiado breve. E que tanto potencial tinha. Mas nunca esqueceremos a entrevista que deu ao ligar para um jornalista da New Yorker para se queixar dos seus colegas que falavam demasiado com jornalistas. De um começou por dizer que era paranóico, tudo daí para a frente é intraduzível. De outro culminou dizendo que tinha por hábito dar prazer a si próprio numa contorção anatomicamente improvável. Em poucos minutos, Scaramucci lembrou-se de tudo, menos de dizer ao jornalista que não queria que aquela conversa fosse parar às páginas da revista. Mas foi. E perdemos Scaramucci.

Costuma dizer-se que a história se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Tenho receio de que a ordem dos factores se esteja a inverter e que nos estejam a servir primeiro a farsa. Se assim for, desconfio que teremos muitas saudades de Scaramucci e dos seus dez dias que entretiveram o mundo. Nos tempos que correm, há que estar grato por todos os pequenos nadas.

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