Venezuela: o poder corrompe ou o poder revela?

O que faltará então é fazer a pergunta: e se o poder revelar a corrupção que já existia antes?

“O poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente”. Já todos repetimos estas palavras, comummente atribuídas ao escritor e político católico inglês Lord Acton. Pergunto-me às vezes se elas não fazem mais mal do que bem.

Em primeiro lugar, esta frase dá uma escapatória fácil ao corrupto: “não foi ele, foi o poder que lhe deram”. Em segundo lugar, a ideia de que é o poder que corrompe acaba por afastar muita gente boa e cívica do exercício da governação: se o poder corrompe, para que quereria alguém exercê-lo?

Em terceiro lugar, quando aplicada a análise de regimes políticos, aquela frase e o raciocínio que lhe serve de base afasta-nos da obrigação moral de enfrentar e denunciar os erros, os abusos e as perversões políticas e ideológicas desses regimes, e de identificar de onde elas vêm. A explicação está encontrada — foi o poder que os corrompeu — para quê procurar mais?

É este debate que já se antevê em torno da Venezuela e do seu futuro. Ao decidir avançar com um processo constituinte contra um parlamento eleito há pouco mais de um ano e em que pontifica uma maioria da oposição, o presidente Nicolás Maduro faz na Venezuela algo semelhante ao que o primeiro-ministro Viktor Orbán faz na Hungria. Quando a Constituição já não dá jeito, muda-se de constituição; quando o povo deixa de estar connosco, muda-se a maneira de eleger os representantes do povo. A Venezuela já não estava bem. A partir de agora, passa a estar partida em duas metades que se revêem em duas constituições diferentes, dois poderes diferentes, duas legitimidades diferentes.

E é aí que entra a questão genealógica: o que foi que causou esta degradação? Para muitos defensores do predecessor de Maduro, Hugo Chávez, a explicação não tardará: foi o poder que corrompeu a elite política venezuelana. Já leio por aí as críticas costumeiras à “burocratização do partido”, as lamentações sobre uma revolução que se perdeu ou foi desviada. Outras duas explicações são também avançadas: foi a morte de Chávez, ou foi o preço do petróleo. Que Maduro é menos carismático do que Chávez, diz-se, e é verdade. Mas não terá sido Chávez a escolher Maduro? E não estava já Chávez esgotado no seu arsenal de frases feitas sobre o imperialismo yankee desde pelo menos o dia em que George W. Bush saiu da Casa Branca? E, a propósito do petróleo, não foi Chávez que baseou o seu programa macro-económico na crença de que o preço do petróleo chegaria aos 200 dólares?

Haverá ainda, durante algum tempo, quem vá defender Maduro com base na lógica de que ele é inimigo-do-meu-inimigo, ou seja, um tipo que chateia os capitalistas (o Goldman Sachs com quem ele negoceia não parece, contudo, queixar-se). Esses são os mesmos que não demoraram mais de cinco meses a vaiar Alexis Tsipras porque ele se recusou a tirar a Grécia do euro — mas que levaram bem mais de quinze anos sem encontrar razão para criticar a prisão e ostracização de políticos e intelectuais por Maduro.

O que faltará então é fazer a pergunta: e se o poder revelar a corrupção que já existia antes? Se supusermos que o poder revela pelo menos tanto quanto corrompe, talvez então facilmente identifiquemos a arrogância, o autoritarismo e o espírito de intolerância que já estavam bem presentes no poder chavista antes e que agora se revelam de forma tão clara com Nicolás Maduro. E assim talvez se evitem cometer os mesmos erros de cumplicidades silenciosas e solidariedades enganosas da próxima vez e com o próximo país, agora que a Venezuela caminha já para um perigoso desconhecido.

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