Mortos de Pedrógão Grande: Governo opta por não pedir levantamento do segredo de justiça

Penalistas garantem que Governo pode requerer ao Ministério Público a divulgação da identidade das vítimas. Mas há quem defenda que se justifica manutenção do segredo.

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Nas zonas afectadas correm há muito informações desencontradas sobre o número real de mortos Adriano Miranda

Instaladas as dúvidas quanto ao número real de vítimas mortais directamente relacionadas com o incêndio que deflagrou em Pedrógão Grande, a 17 de Junho, o Governo pode requerer o levantamento do segredo de justiça para divulgar a identidade das pessoas? Os penalistas ouvidos pelo PÚBLICO garantem que pode, embora discordem quanto à questão se o devia ou não fazer. O primeiro-ministro optou, porém, por remeter essa decisão para o Ministério Público (MP).

Numa nota enviada às redacções ao início da noite desta segunda-feira, António Costa disse ter confirmado junto da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, “que o segredo de justiça abrange a lista das vítimas”, pelo que cabe assim ao MP a decisão de a tornar pública, “se e quando o considerar adequado”.

Esta clarificação surgiu pouco depois de, na sequência das notícias que apontam um número de mortos superior ao oficial, o PSD ter dado 24 horas ao executivo para tornar pública a lista nominativa das pessoas que morreram na tragédia de Pedrógão Grande, exigindo ainda que sejam explicados os critérios usados para a sua constituição. E impôs-se no mesmo dia em que a Procuradoria-Geral da República (PGR) anunciou a abertura de um novo inquérito para apurar as circunstâncias da morte de mais uma vítima, atropelada quando fugia das chamas, que poderá elevar o número oficial de mortos para 65.

Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO asseguram que o Governo pode, no que toca à identificação das vítimas, requerer o levantamento do segredo de justiça. Este mecanismo excepcional visa salvaguardar a integridade do inquérito, mas o Código de Processo Penal (CPP) prevê que este possa ser levantado a qualquer momento, se tal se afigurar “conveniente ao esclarecimento da verdade” ou “indispensável ao exercício de direitos pelos interessados”, no caso os familiares das vítimas.

O Artigo 86.º do CPP determina ainda, no número 13, que “o segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação”. E o pedido para que este seja levantado pode ser apresentado por “pessoas publicamente postas em causa” ou “para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública”.

Neste caso concreto, “a invocação do segredo de justiça funciona como arrefecimento de uma discussão pública que ajuda a apurar os factos” e “a divulgação dos nomes não põe em causa a questão da responsabilidade criminal”, conclui Pedro Garcia Marques, assistente da Faculdade de Direito da Universidade Católica e investigador nas áreas do Direito Penal e Processual Penal, para quem “a questão de saber quantas vítimas existem é uma boa razão para pôr em causa o valor da tutela da intimidade da vida privada”, mais ainda quando “pelo menos alguns desses nomes já são do domínio público”. Logo, acrescenta Pedro Garcia Marques, “o Governo pode requerer ao juiz de instrução criminal que promova essa divulgação em nome do interesse e da tranquilidade pública”.

O penalista Pedro Saragoça da Mata confirma que o Governo pode requerer o levantamento de justiça, mas diz compreender as razões pelas quais este não o faz. “Se a própria lista das vítimas está coberta por esse segredo, será porque o interesse da investigação é o da manutenção desse elemento em sigilo, até que haja uma determinação efectiva de quem sejam as vítimas”, defendeu.

O jurista recorre a um exemplo concreto para fundamentar a sua posição: “Imagine que, num prédio a arder, onde falecem pessoas fruto do incêndio, há alguém que consegue fugir mas que antes aproveita para cometer um homicídio na pessoa de um vizinho. Numa investigação desta natureza, faz todo o sentido manter a identidade das vítimas em segredo, porque não se sabe se são todas vítimas do mesmo evento.”

Embora a lei admita o levantamento do segredo de justiça por razões como sejam “evitar um clamor público ou uma instabilidade ou insegurança da comunidade”, tal só se justifica, segundo Saragoça da Mata, quando “o conhecimento da realidade é fundamental para a paz social”. E, neste caso, “sabermos se há 50 ou 70 vítimas não tem qualquer impacto na paz social”, podendo a divulgação dos nomes, pelo contrário, “obstar a que a investigação atinja os fins pretendidos”.

Por seu turno, o professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto André Lamas considera que revelar a identidade das vítimas “põe em causa direitos de personalidade que vão para além da morte” e que, “se isso acontecesse, o Ministério Público estaria a violar esse interesse da protecção da privacidade e de um certo recato que as famílias podem querer”. Assim, conclui este especialista, “a PGR esteve bem em não entrar nessa divulgação e o Governo faz bem em não requerer o levantamento do segredo de justiça relativamente a essa matéria”.  

André Lamas lembra, de resto, que os familiares das vítimas podem constituir-se assistentes no processo aberto pelo MP e acederem a todas as informações que venham a revelar-se necessárias para accionar o pagamento de indemnizações ou dos prémios de seguros a que tenham direito.

Critérios do MP e da PJ

Entre os sobreviventes das zonas afectadas pelos incêndios correm há muito informações desencontradas quanto ao número real de mortos provocados pelo incêndio. Nos últimos dias, surgiram notícias que dão conta de mais vítimas mortais, além das 64 já divulgadas. Na sua edição de ontem, o i publicou uma lista com 73 nomes de pessoas que o jornal diz terem morrido em consequência directa do fogo, a partir de um levantamento feito por uma empresária de Lisboa.

No fim-de-semana, o semanário Expresso referia que o número final de mortos excluía pelo menos um caso: o de uma mulher, Alzira Costa, que morreu atropelada quando fugia das chamas. Nesta segunda-feira à noite divulgou uma lista com 65 nomes, afirmando ter confirmado tratar-se da lista oficial.

Na mesma nota em que anunciou a abertura de um segundo inquérito “com vista à investigação das circunstâncias que rodearam a morte de mais uma vítima no âmbito de um acidente de viação”, a PGR manteve terem sido identificadas apenas 64 vítimas mortais. Noutro comunicado, o Ministério da Justiça especificou que, na noite de domingo e durante a madrugada de segunda-feira, dias 18 e 19, foram recolhidos os corpos de 61 vítimas mortais. Na manhã do dia 20 “foram ainda levantados os corpos de mais duas vítimas mortais”, elevando o número oficial de vítimas para 63. A estas somar-se-ia um bombeiro de Castanheira de Pêra que veio a morrer no hospital.

“Se calhar, o melhor é divulgar”

Esta explicação surgiu já depois de a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, ter negado a existência de qualquer “lista secreta” de vítimas, aproveitando para explicar que a lista que aponta 64 mortos é composta pelas pessoas cuja morte decorreu “de uma qualquer lesão em consequência directa do fogo”, como inalação de fumo e queimaduras, segundo os critérios definidos pelas “entidades competentes, designadamente o MP e a Polícia Judiciária”.

Nesta segunda-feira, a polémica sobre o número real de vítimas levou o presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, Jorge Abreu, a pedir que sejam divulgados os nomes de quem morreu. “Para serenar as populações, se calhar não era desajustado que se tornasse público ou se compilasse o nome e a relação de todas as pessoas”, apelou.

O autarca de Castanheira de Pêra Fernando Lopes concordou que, “se calhar, o melhor é divulgar a lista” e afastar os rumores, admitindo, embora, que os familiares das vítimas possam não estar disponíveis para autorizar tal divulgação.

O presidente da Câmara de Pedrógão, Valdemar Alves, preferiu, por seu turno, apelar “ao bom senso” das “pessoas que andam com estas histórias”.

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