A fábula da política orçamental pro-cíclica

Para fugirmos à situação de risco em que o país ainda vive será necessário reduzir a dívida para rácios mais reduzidos.

Estamos em Portugal há mais de meia década a falar de dívida pública. Não é bom sinal. Afinal porque nos endividamos? Faz sentido? Para qualquer um de nós, a dívida permite-nos, além de fazer face a gastos específicos muito elevados como a compra de uma casa, manter um certo nível de vida médio ao longo da vida. Podemos pedir emprestado nos anos maus e pagar nos anos bons. Para o Estado, a dívida pública permite aos cidadãos manter um certo padrão de consumo. Como as pessoas valorizam uma certa estabilidade nos seus padrões de consumo, a introdução da dívida cria valor.

A dívida pública permite ao Estado acumular dívida nos tempos de recessão económica e pagá-la em tempos de expansão. O Estado acumula dívida através de deficits primários nas contas públicas (e não só, crescimento económico e juros pagos também desempenham o seu papel). Durante o ciclo económico, em recessão, uma parte da despesa pública aumenta, como por exemplo, a despesa com o subsídio de desemprego, e do lado da receita, a arrecadação de impostos diminui. Acumula-se dívida. Assumindo que o efeito de juros e crescimento se anulam, essa dívida pode ser paga durante o período do ciclo económico em que a economia expande, poupando na despesa cíclica (subsídios de desemprego e contribuições sociais) e graças ao aumento da receita de impostos. Vai sendo paga nos períodos bons graças a um maior saldo nas contas públicas.

A dívida pública vai assim cumprindo a sua função de suavização dos ciclos económicos de forma discreta. Invisível ao comum dos cidadãos, não é tema. É deixada ao cuidado especializado dos técnicos que se ocupam da sua gestão, em Portugal no IGCP.

Mas a tentação que a acumulação de dívida representa para os governantes pode ser muito forte. A sua acumulação pode permitir ir gastando mais ou baixar impostos também nos bons períodos. A acumulação de dívida pode ser transformada em instrumento politico, na promessa de um mundo sempre melhor, mesmo que os aspetos fundamentais da economia não o permitam. Se esta tentação não for contida, a dívida passa a ser um problema. A sua redução pode passar a ser uma necessidade mesmo nos momentos mais difíceis, invertendo o seu papel em que aporta valor suavizando padrões de consumo ao longo do tempo.

As crises surgem quando o ritmo de acumulação de dívida é elevado e os deficits primários parecem fora de controlo, quando o Estado acumula deficits sucessivos elevados nos tempos bons e nos tempos maus. E, em consequência, os investidores recusam-se a voltar a comprar dívida quando se dão os reembolsos. Só resta então ao Estado cumpridor pedir ajuda e cortar nos deficits públicos de forma estrutural (independentemente dos efeitos cíclicos exemplificados). Normalmente, este ajustamento ocorre nos piores períodos e vai contra a lógica de suavização de que se falou acima (sem ajuda e com deficits externos a situação ainda seria pior). O processo de redução dos deficits necessário para restabelecer um equilíbrio faz com que o Estado tenha que poupar nos períodos em que a população está em dificuldade com custos sociais elevados.

Vejamos o caso português. O deficit estrutural primário (sem custos de juro e ajustando pelo ciclo económico) era de 5,8% em 2009 e passou para 8% em 2010. O deficit aumentou num período em que o PIB cresceu 1,9%. Logo de seguida, em 2011, surgiu a necessidade de recorrer ao programa da troika e, em 2011, o deficit estrutural primário passou para 2%, reduzindo-se em 6% num ano em que o PIB caiu 1,8%. Ou seja, à revelia do principio de manutenção do padrão de consumo, o deficit aumentou com a economia a crescer e reduziu-se dramaticamente com a economia a decrescer. E em 2012, o saldo estrutural primário passou para 1,8% positivo com o PIB real a cair 4%. O ajustamento prosseguiu-se em 2013, com um saldo estrutural primário de 3,2% positivo (invertendo os deficits do passado) e o PIB a ainda a contrair 1,1%. A partir daí, o ajustamento no saldo estrutural primário foi diminuto e a economia cresceu. Como vemos, a necessidade de estabilizar a dívida pública a níveis elevados criou esta situação contra-natura, em que a dívida, em vez de permitir suavizar padrões de consumo, os extremou. Não permitindo ao Estado aumentar os deficits de forma a acomodar o efeito da recessão.

Para fugirmos a esta situação de risco em que o país ainda vive (dívida está no pico) e para que não se tenha de voltar a contrair saldos primários em períodos de recessão, será necessário reduzir a dívida para rácios, em relação ao PIB, mais reduzidos. E fazê-lo aproveitando os períodos bons de que é um bom exemplo este momento de expansão em que a economia se encontra. E aproveitá-lo enquanto dura, porque a economia não vai crescer a este ritmo para sempre, algures no futuro vai haver um abrandamento, parte integrante do ciclo económico. Aproveitar os tempos de expansão para continuar a gerar saldos primários positivos. Não ceder à tentação de aumentar despesa pública, aproveitar o balanço do crescimento da economia e reduzir a dívida substancialmente.

Para que a dívida pública possa voltar a desempenhar o seu papel na geração de valor, como factor de estabilização do padrão de consumo. Para que deixe de ser tema fora dos meios técnicos.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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