Há 90 leis “coxas” desde 2003 por falta de regulamentação

Diplomas entram em vigor e ficam anos à espera que o Governo regulamente alguns aspectos da lei ou o seu objecto fundamental, pondo em causa a sua prática efectiva. 2015 é o pior ano.

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O actual Governo estabeleceu como regra só aprovar legislação em Conselho de Ministros uma vez por mês - e 2016 foi o primeiro ano com menos de 100 diplomas. Daniel Rocha

O processo de fazer uma lei, tenha ele início no Governo ou na Assembleia da República, nem sempre se esgota com a sua publicação e entrada em vigor. Há leis que precisam de regulamentação que pode condicionar apenas uma pequena parte da sua aplicação prática ou toda ela. De acordo com as contas feitas pelo PÚBLICO a partir de um relatório dos serviços da Assembleia da República, estão por regulamentar cerca de 90 leis referentes ao período entre 2003 e Setembro do ano passado, incluindo as dos recentes orçamentos do Estado, que contêm sempre diversas autorizações legislativas dadas pelo Parlamento ao Governo para regulamentar medidas.

Por exemplo, o Estatuto do Bolseiro de Investigação data de 2004, e já foi alvo de três revisões entretanto, mas 13 anos depois continua por regulamentar o acesso pelos bolseiros a cuidados de saúde, embora todo o restante regime esteja em vigor. Já a lei que estipula um programa especial de apoio social para a Ilha Terceira (majorações no subsídio de desemprego, abono de família e rendimento social de inserção) para compensar a redução da presença americana na Base das Lajes, aprovada em Abril do ano passado, continua sem poder ser aplicada porque ainda está “em circuito legislativo do Governo”, segundo o gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Ou seja, está por regulamentar como serão aplicados esses apoios. Outro caso é o da universalidade do pré-escolar a partir dos quatro anos, que devia ser regulamentada até final de Janeiro de 2016 para entrar em vigor em Setembro, mas que está parada à espera da decisão sobre a data para a universalização aos três anos. 

Da PJ às touradas

Estes são apenas três exemplos dos variados problemas levantados pela falta de regulamentação das leis por parte do Executivo. Porque há mais matérias que foram ficando “coxas” por não estarem completas, como é o caso da lei que estabelece as medidas de protecção da orla costeira e a lei de bases da protecção civil (2006); o regime jurídico das instituições de ensino superior (2007); a lei orgânica da PJ (2008; será revista este ano); as indemnizações às vítimas de crimes violentos e violência doméstica (2009); sigilo bancário, prática de naturismo (2010); remoção do amianto de edifícios públicos, certificação de maquinistas de comboios (2011).

O Governo PSD/CDS também deixou muitas leis aplicadas a meio gás: entre outras, sobre prestação de serviços postais, reabilitação urbana, a lei de bases dos cuidados paliativos, a classificação de arvoredo de interesse público, a Bolsa de Terras (2012); regime financeiro das autarquias e entidades intermunicipais, ensino da condução, regime da fiscalidade verde (2014); comércio internacional de diamantes, funcionamento do Conselho das Comunidades Portuguesas, actividade de artista tauromáquico, contribuição extraordinária sobre o sector energético, lei de bases da protecção civil, funcionamento das casas de acolhimento de crianças e jovens em perigo (2015).

Por vezes, os partidos representados na Assembleia da República tentam contornar o problema, apresentando alterações às leis. É o que estão a tentar fazer o PSD, o Bloco e do PCP à Lei da Nacionalidade aprovada pelo Governo anterior (PSD/CDS), mas ainda não regulamentada (o Governo de António Costa está a tratar disso agora), com projectos de lei para mudar as regras sobre como os estrangeiros a residir e a trabalhar em Portugal e os seus filhos aqui nascidos ou os netos de portugueses nascidos no estrangeiro podem ter nacionalidade portuguesa.

Não há dinheiro, não há lei

Ora, e quem pode regulamentar uma lei? Depende do membro do Governo que o próprio texto da lei indicar, mas é normal que um dos governantes seja o da pasta da Finanças. Porque há muitas questões que exigem despesa adicional. Um caso: o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas das Liberdade prevê que os detidos que queiram frequentar cursos de ensino ou façam trabalho de manutenção para o estabelecimento prisional sejam pagos por isso, mas esses subsídios não foram ainda definidos porque se “aguarda oportunidade financeira para o efeito”. Isto é, não há dinheiro, não se legisla.

A larga maioria das leis que estão por regulamentar ou que estão apenas parcialmente regulamentadas não tinham prazos estipulados para isso – factor que também contribui para um maior desleixo. De acordo com o relatório da Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar que abarca o período entre a IX legislatura (2002/2005) e Setembro do ano passado, o ano mais problemático foi o de 2015, que poderá explicar-se pelo facto de ter havido eleições e o Executivo anterior ter adiado a regulamentação. O actual Governo mudou alguns procedimentos na forma de legislar: por norma só faz um Conselho de Ministros deliberativo por mês e os seus decretos-lei são aprovados já com a regulamentação. Mas as suas propostas de lei ainda têm que passar pelo Parlamento e é deste que acabam por emanar todas as leis.

Um exemplo: no Verão de 2015, em tempo de pré-campanha legislativa foi publicada a lei que obrigava à atribuição de médico de família a todas as crianças logo à nascença, mas que só entrava em vigor em 2016. Acabou por ser o actual Governo a regulamentar essa lei em Agosto passado. Mantendo o objectivo de não fazer legislação desnecessária, o actual Executivo tem aprovado menos leis que o anterior e segundo o secretário de Estado Pedro Nuno Santos todas as que estão por regulamentar estão a ser analisadas, prometendo, em boa parte delas, novidades ainda este ano.

Depois, há os casos em que a lei estipula prazos mas eles não são cumpridos. Olhemos para os diplomas da actual legislatura em falta. O Governo devia ter estipulado a forma de implementação do Plano Nacional de Prevenção e Controle de Doenças Transmitidas por Vetores (insectos portadores, por exemplo, de dengue e zika) até 29 de Maio do ano passado, mas ainda não o fez. Para além do programa de apoio para a Ilha Terceira, que devia ter sido legislado até 3 de Junho passado, também ainda não pode ser aplicada a lei que criou a rede de centros de recolha oficial de animais e que proíbe o abate de animais vadios porque está por fazer a regulamentação que devia ter sido feita até Novembro; nem tão pouco o regime de apoio à agricultura familiar nos Açores e na Madeira, que devia ter ficado concluído até ao início deste mês.

Embora já fora de prazo, o Governo regulamentou o alargamento da procriação medicamente assistida, incluindo o recurso à gestação de substituição, o incentivo fiscal à produção cinematográfica ou a renovação dos contratos dos médicos internos. Mas dentro do prazo usou a maior parte das autorizações legislativas do OE2016, incluindo a relativa à transposição de directivas sobre troca automática de informações fiscais, contas bancárias e transferências financeiras com destino a paraísos fiscais, e o regime em que há obrigatoriedade de comunicação à Autoridade Tributária de tais movimentos por parte de residentes em Portugal.

 

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