França: os perigos de se varrer o lixo para debaixo do tapete

Se depois de toda esta negligência se espera que venha Macron salvar a França e a UE é porque as elites francesas continuam a ter o mesmo bom velho gosto pelo risco inconsciente.

Emmanuel Macron, um dos candidatos às presidenciais francesas, meteu-se em apuros por ter dito na Argélia que a colonização foi um crime contra a humanidade. Tem agora à perna uma parte da classe política do seu país e à porta dos seus comícios manifestações de ex-colonos empedernidos. Passou de ser considerado um dos candidatos mais promissores nestas eleições para ser tido por um ingénuo que caiu num dos erros mais básicos que se pode cometer em França.

O que isto tem de notável é ser evidente que a colonização em geral foi um crime contra a humanidade e que a colonização francesa na Argélia foi particularmente cruel e desumana. O Estado francês deslocou milhões de pessoas das suas terras, prolongou uma guerra brutal para impedir a inevitável independência e deu cobertura a práticas torcionárias que ficaram impunes. A França não é (como Portugal também não é) o único país colonizador que tem dificuldades em olhar a sério para o seu passado. O que há de especial na França é ainda haver tanta gente esperando e exigindo que os políticos embarquem na mentira de que a “sua” colonização foi uma espécie de favor prestado pela civilização francesa aos colonizados. Foi esse tabu que Macron, normalmente criticado por não assumir as suas posições, quebrou por sua conta e risco — e que, nesta fase do campeonato, lhe poderá custar a passagem à segunda volta das eleições e uma vitória contra Marine Le Pen nos resultados finais.

A tendência francesa para varrer o lixo para debaixo do tapete não é de hoje. Em 1961 houve um massacre de argelinos em plena Paris, com dezenas ou centenas de manifestantes pró-descolonização a serem afogados no rio Sena. Esse massacre só foi reconhecido 40 anos depois. As políticas francesas em relação ao médio-oriente e ao mundo árabe continuam tão hipócritas quanto já eram, com Sarkozy servindo-se e sendo servido por Khaddafi até ao dia em que decidiu juntar-se à coligação para o despachar — violando o mandato de uma zona de exclusão aérea que fora aprovada com o fim exclusivo de impedir o massacre de civis na Líbia —, e com Hollande a vender armas à Arábia Saudita enquanto alega lutar contra o fundamentalismo islâmico. Como esperavam ambos os presidentes que essas contradições não fossem aproveitadas pelos recrutadores das redes terroristas islâmicas entre os jovens franceses, de origem magrebina ou não, é algo sinceramente difícil de entender.

O exemplo mais acabado da persistente atitude de negação da França oficial é o da forma como esta não quis saber lidar com a Frente Nacional da candidata que vai à frente nas sondagens, Marine Le Pen. Durante décadas, o sistema político francês esteve (e ainda está) feito de forma a que a Frente Nacional não possa eleger sequer um deputado. Bloqueados em França, os nacional-populistas acabaram por investir nas eleições europeias onde, apesar de detestarem a UE, as regras são mais proporcionais. Com isso tiveram acesso a mandatos políticos, fundos europeus e uma tropa de “revolucionários profissionais” que passaram a ter atividade partidária a tempo inteiro. O primeiro sinal de alarme foi dado em 2002, quando o pai de Marine, Jean-Marie Le Pen, eliminou o primeiro-ministro socialista para passar à segunda volta das presidenciais. De 2002 a 2017, o que mudou em França? Nada. A não ser que Marine é mais esperta do que o pai e beneficiou entretanto de quinze anos de “normalização”.

Se depois de toda esta negligência se espera que venha Macron salvar a França e a UE é porque as elites francesas continuam a ter o mesmo bom velho gosto pelo risco inconsciente. Chato é agora — num tempo em que já não há eleições nacionais que não sejam europeias — virmos todos a pagar por isso.

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