O dólar teve tempo para falhar. E o euro?

Na construção da União Económica e Monetária, a “zona monetária” do dólar é, objectivamente, o exemplo mais informativo. Mesmo no pico da crise, a integridade dos EUA e da sua zona monetária nunca esteve em causa.

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REUTERS/Brendan McDermid

Não há muito na ordem vigente que o Presidente Trump não ponha em causa. Porém, nem ele põe em causa a existência e o papel da Fed. Esta é, provavelmente, uma das mais relevantes lições que o euro e o sistema bancário europeu podem e devem retirar do exemplo americano. Draghi parece entender isso mesmo e por isso a atitude do BCE não tem estado adstrita ao domínio financeiro e à leitura literal do seu mandato relacionado com a estabilidade de preços. É também uma gestão política. Até porque, ao contrário dos Estados Unidos primordiais, a União Europeia não tem tempo para só acertar ao segundo ou terceiro BCE. 

Sim, a União Europeia continua a ser uma experiência sui generis. Nos tempos que correm, o desígnio da “ever closer union” ainda inscrito nos tratados parece envergonhar até os políticos mainstream, parecendo os Estados Unidos da Europa hoje quase tão miríficos como no tempo em que Almeida Garrett os pedia.

Contudo, seja em conversas casuais, seja em discussões académicas ou em círculos políticos, quando se trata das falhas do euro, da reforma do modelo de governação que o sustenta, e dos seus avanços e recuos, é inevitável que, mais até implícita do que explicitamente, se pense e fale no exemplo da nação americana. Na construção da União Económica e Monetária, a “zona monetária” do dólar é, objectivamente, o exemplo mais informativo.

Não surpreende por isso que Jeff Frieden, de Harvard, nos traga as lições para o euro da história monetária e financeira americana, em que relata a história fascinante da ascensão e queda do primeiro e segundo Banco dos Estados Unidos, que levaria mais tarde, e finalmente, à fundação da Fed e à construção do edifício monetário e financeiro que sustenta o dólar e, sem dúvida, sem o qual não se conceberiam os Estados Unidos enquanto nação.

Mesmo tendo em conta a brutal crise financeira de 2007-2008 e as suas consequências económicas, que perduraram ao longo dos anos seguintes — veja-se que só recentemente começou o tapering (inversão) das medidas de política monetária não convencional (quantitative easing) —, a actual ordem monetária e financeira dos EUA resistiu a tudo isto sem grandes sobressaltos, e permanece hoje estável e incontestada.

Quase ninguém nos EUA põe em causa o dólar. Mesmo no pico da crise, a integridade dos EUA e da sua zona monetária nunca esteve em causa: a Califórnia ou Nova Iorque não quiseram abandonar a união, nem o Mississípi sentiu que precisava de recuperar soberania (monetária) para fazer face à crise.

Aqui, apesar de tudo, a situação actual revela também uma vitória para o euro, pelo menos até ver. Com reformas parcelares, com hesitações, com quase desagregação — e com uma crise discutivelmente mais frustrante do que nos EUA —,  também o euro ainda cá está.

Embora as suas decisões sejam sempre alvo de polémica, também quase ninguém põe em causa a existência e o papel da Fed, salvo alguns “teapartistas” que ressuscitaram frases e ideias de Andrew Jackson — o famoso poster End the Fed é disso exemplo — e um grupo relativamente marginal em torno de Ron Paul, o simpático médico libertário (e antigo D. Quixote presidencial).

Note-se que a abordagem (?) anti-sistema do Presidente Trump poder-nos-ia fazer, à partida, pensar que a Fed seria um claro alvo da sua retórica. Afinal, se num passado recente a acção da Fed até esteve associada a políticas “de direita” com Greenspan, hoje não é assim. A política monetária foi decisiva para a estratégia (e o sucesso) da política económica de Obama. Se na zona euro de hoje temos tido o BCE a fazer “whatever it takes” e a política orçamental a puxar para o lado contrário, nos EUA as políticas orçamental e monetária deram uma resposta coordenada à crise.

Além disso, tanto Bernanke como agora Yellen são ambos “intelectuais”, académicos, burocratas. Yellen é democrata, e Bernanke, tendo sido republicano, parece ser contra o actual rumo da História, tanto que fez saber em 2015: “Não deixei o Partido Republicano, sinto antes que ele me deixou a mim.” Aquelas posições jacksonianas contra a Fed podem ter vindo a ganhar algum apoio, não são maioritárias, e apesar de tudo isto, Trump não parece contar a Fed entre os inimigos do povo que pretende destruir, pese embora a existência de bastante incerteza sobre a forma como a sua Administração se vai posicionar quanto à política monetária.

Frieden tenta desfazer a percepção, errada, de que o sólido, indiscutível edifício do dólar surgiu naturalmente, simplesmente porque os EUA “são um país”. Na verdade, as instituições que hoje conformam esta fortíssima união monetária e financeira — e que permanece, ainda assim, com um grau de descentralização substancial — precisaram de muitas décadas (e uma guerra civil!) para se estabelecer. Ora, não faz sentido exigir-se à Europa que o faça muito mais depressa. Os gritos de que o projecto europeu (ou, pelo menos, do Euro) está condenado ao fracasso, e que nunca vai resultar, em virtude das diferenças histórico-culturais entre os Estados-membros parecem, à luz desta história, manifestamente exagerados e, talvez, impacientes.

Frieden mostra-nos também que nos EUA dos séculos XVIII e XIX existiram divisões profundas, muito acirradas e agressivas, com origem em diferenças económicas — e, mais do que isso, em termos de conflito distributivo. Tratava-se, também, de disputar a repartição, entre os centros financeiros já bem estabelecidos do Norte e os novos colonos do Sul e das zonas raianas, para “dentro” (o Midwest de hoje), dos ganhos de um dinamismo económico pujante, empurrado pelo crescimento galopante da dimensão demográfica e geográfica da nova União.

Um exemplo: o Mississípi e outros estados novos sentiam que precisavam da tal soberania monetária e financeira, de se libertar dos austeros e ricos estados do Norte. Após o fim do segundo Banco dos Estados Unidos, os desequilíbrios financeiros (crédito e emissão de moeda desregulados) e orçamentais (subida vertiginosa da dívida estadual) foram de tal ordem que passaram a existir, efectivamente, vários dólares diferentes. Uma nota de dólar emitida pelo banco central de Massachusetts valia um dólar, mas uma nota do Alabama podia valer 30% menos. Quanto aos dólares do Mississípi, já ninguém os queria, seja a que preço fosse. Os estados do Sul estavam fortemente endividados a favor dos do Norte. A divisão entre “credores” e “devedores” era clara.

Através desta história, e com citações e relatos da época, Frieden mostra assim que, nos EUA primordiais, o tipo de problemas e divisões, as acusações que os estados trocavam, o tom das discussões, a gravidade das tensões parecem ter sido muito semelhantes às que hoje temos entre os “credores” e “devedores” no euro — sem que existissem quaisquer diferenças histórico-culturais de fundo. Ora, um dos obstáculos que se colocam, soa dizer-se, ao sucesso da integração económica e monetária europeia passa pelas diferenças culturais, idiomáticas, étnicas e um passado histórico rico e recheado de desavenças. Será? Ou, antes, money talks, bullshit walks?

Outra lição essencial: a credibilidade das instituições centrais (federais) foi fundamental na construção do edifício monetário-financeiro dos EUA. Só quando a autoridade e a importância dessas instituições foram reconhecidas, e aceites por todos os estados, é que o regime monetário, a política monetária e a política de regulação financeira passaram a afirmar-se de forma sustentada e robusta.

A confiança nas instituições que suportam o euro, por parte das opiniões públicas, foi duramente afectada na crise. Muitos cidadãos dos países do Norte vêem o BCE como estando a “roubar-lhes” as poupanças, muitos cidadãos dos países do Sul acham que o BCE é apenas mais um elemento das troikas que os querem punir. Quase ninguém entende a importância que um BCE forte, credível e politicamente responsável tem para o euro e, em última análise, para o projecto europeu. Isto é preocupante (e Frieden alerta para isso mesmo), talvez mais do que uma suposta rejeição da integração europeia ou sequer de “Bruxelas”, essa nebulosa que, apesar do esforço dos políticos em culpá-la pelos problemas, os cidadãos teimam em não diabolizar

Eis o fio negro que liga preocupações com o populismo e com a durabilidade do euro: como estamos a ver, diariamente, com Trump, não é preciso haver um consenso avassalador contra as instituições que o suportam para o destruir (nem sequer uma maioria sociológica), basta que surja o momento certo. É pois necessário que os políticos de Bruxelas defendam as instituições que representam, e que os políticos nacionais tenham a coragem de criar condições para que a sua credibilidade e autoridade sejam reforçadas. Não podemos estar dependentes somente da coragem e boa vontade de Draghi.

Diga-se, de passagem, que a importância que Draghi assume hoje não é por acaso. Na realidade, o papel e a função dos bancos centrais têm uma natureza fundamentalmente política — não é, contrariamente ao que parece ser a visão prevalente nos círculos políticos, uma função de “contabilista”.

O BCE deve privilegiar mais a estabilidade financeira, prevenir os problemas que a sua política expansionista potencia, como a formação de “bolhas” ou distorções nos mercados obrigacionistas, e não desincentivar totalmente a poupança como tem acontecido, para grande infelicidade dos avisados aforradores alemães? Ou deve manter o pé no acelerador e continuar a fazer pelo crescimento nos países ainda em convergência como Espanha ou Portugal, dar-lhes “gasolina” que permita fechar o ainda existente hiato negativo do produto e reduzir o desemprego?

Esta é uma questão inequivocamente política, e a resposta só pode ser a de algum tipo de compromisso entre os interesses dos “credores” e os dos “devedores”. Draghi tem de facto sido um fiel da balança, até simpático para os últimos, mas nada disto tem sido assumido como tal. Na História dos EUA, o primeiro e segundo bancos dos Estados Unidos soçobraram, também por não conseguirem resolver dilemas do mesmo género. Parte da credibilização e da instalação em bases mais consistentes das instituições monetárias passou precisamente por reconhecer que havia aqui um conflito efectivo — e permanente — a resolver.

Aliás, a política da Fed também, natural e consistentemente, reflecte a visão de um certo compromisso entre as necessidades diferenciadas dos diversos estados.

Nesse aspecto, o euro já segue o exemplo americano, um aspecto tipicamente esquecido. Na verdade, a tal importância de Draghi não lhe é exclusiva. Além da implementação descentralizada, as principais decisões de política monetária no Eurosistema são tomadas pelo Conselho do BCE, em que os governadores dos bancos centrais nacionais têm, literalmente, voto na matéria. Nos EUA, acontece o mesmo, tendo os governadores dos Federal Reserve Banks descentralizados (não por estados, sendo antes o país dividido em doze Federal Reserve Districts) rotativamente direito de voto nas decisões do Open Market Committee.

Por outro lado, há algo de muito positivo que o euro já conseguiu e que, como nota Frieden, os EUA não tinham na altura — e tiveram de fazer por isso. Quase instantaneamente, o euro ganhou credibilidade internacional, tendo-se imposto já como moeda de reserva internacional (e não, não só à custa da Alemanha). Poucos duvidam também de que a emissão de dívida da União teria também tudo para ser bem-sucedida. Tudo isto é um activo muito valioso, que não deve ser desprezado.

Assim, as lições para o euro da História americana devem-nos olhar com alguma calma e distanciamento para os problemas actuais. Perceber que levará tempo e paciência para que se vá sedimentando. Mas convoca a coragem dos políticos em defender, desde logo, a ideia do euro e, por outro lado, as instituições que o suportam, dando-lhes condições para cumprir o seu mandato e dando-lhes legitimidade política, sem pôr em causa, contudo, a sua independência. Para tal, pode e deve ser aproveitado o facto de o euro já ter conseguido também muito de bom.

Isto é decisivo, e não só para permitir que a Europa consiga ser uma união de “Estados sociais prósperos”. Olhemos para o caso-limite, altamente distópico: pensando num impensável regresso à guerra na Europa, as consequências seriam muito mais devastadoras do que a Guerra Civil Americana, já de si muito sangrenta. Ao contrário dos EUA primordiais, a União Europeia não tem assim tempo para só acertar ao segundo ou terceiro BCE.

Director executivo do Instituto de Políticas Públicas Thomas Jefferson-Correia da Serra (IPP) e docente do ISEG-ULisboa

A versão portuguesa do ensaio de Jeffry Frieden está disponível, com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, para download gratuito.

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