O mundo de hoje e as flores do mal

Trump e os seus perigosos desvarios são apenas um sinal de algo mais vasto. O mínimo que se exige, neste podre cenário, é algum discernimento.

Estreia-se este mês, nas salas de cinema portuguesas, o filme Stefan Zweig - Adeus, Europa, que encerrou no final de Janeiro a KINO – Mostra de Cinema de Expressão Alemã, em Lisboa. Essa estreia ocorrerá no mesmo dia em que, há 75 anos, Zweig se suicidou com a mulher, Lotte, com uma dose letal de barbitúricos. Exilado no Brasil, em Petrópolis, a sua morte espantou o mundo porque parece ter surgido do nada, num lugar onde ele era feliz. Mas não foi o Brasil que o levou a acto tão extremo, foi antes a Europa, a sua Europa, que colectivamente se suicidava, afogada em sangue, imersa em ódio, dilacerada numa contenda da mais irracional violência. E isso fê-lo perder a esperança, apesar de muitos milhões continuarem a batalhar e a morrer por ela. Por isso, a terminar a carta de despedida, Zweig escreveu: “Saúdo todos os meus amigos! Que possam ainda vislumbrar a aurora matinal após a longa noite! Eu, demasiado impaciente, vou-me embora antes.”

Mais do que esse acto em si, são as reflexões de Zweig sobre o mundo que o viu nascer que nos devem alertar para a vida dos nossos dias. No seu livro O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu (Ed. Assírio e Alvim, 2005, reeditado pela segunda vez em 2015), o escritor austríaco escreve: “Fui festejado e proscrito, livre e subjugado, rico e pobre. Todos os lívidos corcéis do apocalipse tomaram de assalto a minha vida.” E a vida da Europa: revoluções, fome, epidemias, terror, desvalorização da moeda, emigrações forçadas, o fascismo, o nazismo, o bolchevismo e (escreve ele no prefácio, ainda antes de traçar o quadro desta espiral de destruição), “sobretudo, a maior de todas as pragas, o nacionalismo que envenenou a flor da nossa cultura europeia.”

O século XX foi catalogado como “o século do povo”. Não é propriamente um elogio. O povo, em si, não é um conceito valorativo. Dele saem justos e assassinos, destemidos e cobardes, gente de honra e patifes da pior espécie. O que eleva o povo é a humanidade adquirida na educação, na cultura, no respeito pelo próximo, na compreensão da necessidade da justiça, na nobreza de carácter e é tudo isso que nos assegura um mais elevado grau de civilização. Zweig viu assim, na juventude, a sua velha Áustria, e viu-a também ser arrastada violentamente da pachorrenta civilidade em que repousava para um futuro de sombras e morte, onde velhos amigos se tornaram adversários letais e onde os valores da vida e da cultura foram espezinhados sem piedade. Viu-o na Áustria e em toda a Europa, imersa nos seus piores fantasmas e tomada por eles, num vórtice de sangue. E de um tempo onde se circulava sem medo e em muitos casos sem passaporte, passou-se a um tempo de trevas, de ódios, de deportações, de muros, de assassínios em massa, em nome de novos poderes. Zweig estava exilado em Londres quando foi declarada a guerra. E aquele 1939 lembrou-lhe 1918. “Como num sonho acordado, vi as longas filas de mulheres desencantadas à porta das lojas de víveres, as mães enlutadas, os feridos, os estropiados, todo o impressionante horror de outrora regressando fantasmagoricamente na luz radiosa do meio-dia. (…) E eu sabia: de novo o passado se ia, de novo ficava reduzido a nada o que fora construído – a Europa, a pátria comum para a qual vivêramos, estava destruída muito para lá da nossa vida terrena. Algo diferente começava, uma nova época, mas quantos infernos e purgatórios ainda teríamos de palmilhar para a alcançar.” Exacta premonição.

Hoje, as "flores do mal" dos nacionalismos regressam. Regressam também a demagogia populista, o terror, a falsidade mascarada de ousadia, a desconfiança e o desprezo pelos outros, a tentação de descer largos degraus na escala civilizacional, a ofensiva dos muros, das retaliações, dos eternos ódios. De nada vale invocar Hitler, Mussolini ou Estaline, arriscando comparações desajustadas. Cada época tem os seus bravos e os seus carrascos, cada insanidade ou estupidez humana tem o seu reverso consoante os tempos. Trump e os seus perigosos desvarios são apenas um sinal de algo mais vasto. O sol brilha, é verdade, mas também brilhou sobre a Áustria de Zweig, ou sobre Berlim, Paris e Londres antes da carnificina. O mínimo que se exige, neste podre cenário, é algum discernimento.

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