2016 – O ano em que a morte nos agarrou à vida

Num tempo de divisões, juntámo-nos à volta das mortes de Bowie, Cohen ou Prince, para celebrar a vida, tentando atribuir sentido a um panorama cultural fragmentado e a um mundo em decomposição. Em Heroes, Bowie cantava que todos podemos ser heróis por um dia. Eles foram-no por muitos mais.

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Festa no Lux, em Lisboa, em Janeiro de 2016, dias depois da morte de David Bowie Luisa Ferreira

Esta imagem. Uma semana depois da morte de David Bowie, a 10 de Janeiro deste ano, dois dias depois do seu 69ª aniversário e do lançamento do álbum Blackstar, num domingo à tarde, o icónico espaço do Lux, em Lisboa, enchia-se para se celebrar a eternidade da sua obra. Lá dentro gente de muitas gerações, afecta a díspares géneros de música, artes e estilos de vida, dançava ao som de Bowie, com roupas e maquilhagens alusivas ao músico. Mais do que chorar a morte, celebrava-se ali a vida.

Um pouco por todo o lado aconteceram eventos semelhantes. O que vai sendo raro. Por um lado, porque os acontecimentos e os artistas que são capazes de produzir um sentido que é apreensível por quase todos vão escasseando. Por outro, porque as práticas culturais parecem confrontar-se hoje com uma espécie de esvaziamento, onde tudo parece derivativo, manifestando-se de forma fragmentária, sem que seja possível extrair daí um todo coerente para uma maioria. Talvez tenha sido sempre assim, mas a forma como a comunicação se processa hoje intensificou essa sensação.

E no entanto nos momentos rituais em que a morte se impôs durante o corrente ano – para além de Bowie, poder-se-ia falar de Leonard Cohen e Prince, como os exemplos significativos dessa expressão diagonal – foi possível constatar a força da cultura popular, como se todos nos reuníssemos à sua volta, em lugares físicos ou nas redes sociais, em público ou privado, partilhando as marcas que deixaram no imaginário de uma larga maioria.

É verdade que as motivações para tal podem ser as mais diversas – fúteis, descartáveis, nobres ou sérias. Mas se existiram circunstâncias onde descobrimos que para a generalidade dos indivíduos, a música, o cinema, o teatro, os livros ou as artes não são irrelevantes, não são mero entretenimento, fazem parte da sua vida, atribuem sentido à sua existência, estão inscritas no que são ou desejam ser, na sua visão do mundo ou do mundo como quereriam que ele fosse, foi quando morreram figuras como Bowie, alguém transgeracional e transdisciplinar, produzindo efeitos sobre os comportamentos e a memória colectiva.   

Talvez em tempos de transição, ou de desnorte, conforme as opiniões, esse tipo de sentimentos emerja de forma mais fulgurante. Diz-se que é na desordem que se regressa aos valores perenes, ou ao que pode atribuir inteligibilidade ao presente. Precisamos de heróis, dizem uns. Nem pensar, alegam outros. Seja como for é como se essas ocasiões funcionassem como catarse colectiva, uma aparência de ordenamento do caos.

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Uma desordem inscrita no panorama cultural na última década, quando não só percebemos que qualquer pessoa podia ser famosa por 15 minutos, como profetizou Andy Warhol, como podia sê-lo apenas para 15 pessoas, de tal forma vivemos imersos numa cultura de inúmeros pequenos nichos que não se tocam entre si. Parecemos perdidos na imensidão do espaço digital, no excesso de informação, na proliferação de suportes, de maneiras de ouvir, ver ou ler, em todo o lado, a toda a hora, procurando, com ansiedade, a qualidade no meio da imensa quantidade.

No caso da música popular essas mortes confrontaram-nos com outro paradoxo. A cultura popular, quando se pensa na simbologia do rock, está com mais de 60 anos. É inevitável que os seus pioneiros estejam a desaparecer e que o seu público seja transgeracional. Hoje os filhos consomem o mesmo que os pais e vice-versa. Veja-se o caso da veterana e fulgurante Elza Soares coadjuvada por um colectivo de jovens músicos paulistas ou da magnífica dupla portuguesa Medeiros & Lucas que junta dois músicos de distintas gerações. Ao mesmo tempo o rock tornou-se um lugar respeitável – o Nobel da literatura a Bob Dylan só o veio confirmar. Ou seja, existe uma dissociação entre a realidade e a mitologia. O rock afirmou-se como a música dos jovens, para os jovens, expressando o que é isso de ser jovem. Hoje essa narrativa não tem qualquer sustentáculo.

Até há poucos anos era como se a morte dos agentes da cultura rock provocasse uma suspensão do tempo. No nosso imaginário, quando elas aconteciam (Hendrix, Morrison, Curtis, Cobain, Winehouse), era como se apenas reforçassem a máxima do “viver rápido e morrer depressa”. Em 2016 a morte no rock naturalizou-se por completo (Alan Vega, Sharon Jones, Lemmy, George Martin) e a tendência será a sua vulgarização.

Novos protagonistas

Mas não foi apenas a morte que agregou na música. Uma avalanche de novos protagonistas, sons e práticas impôs-se. A força da canção não esmoreceu, seja quando procurou terrenos elegantes (Frank Ocean, James Blake) ou quando integrou novas formas (Angel Olsen, Anna Meredith), enquanto a música feita em Portugal se afirmou na diversidade (Capitão Fausto, Gisela João, Helder Moutinho, Bruno Pernadas).

Foi um ano agitado politicamente com o Brexit, a eleição de Trump e a sensação que se vivem tempos de transição e houve banda-sonora para este período, nos últimos álbuns de Anohni ou de PJ Harvey, ou nas lutas identitárias de Beyoncé ou Solange, num espectro universal, ou mais circunscrita, no caso de Moor Mother, Yves Tumor ou Jenny Hval.

Essa sensação de desagregação não está inscrita apenas na música. Face ao terror, ao obscurantismo e aos populismos, os artistas mobilizaram-se nos palcos, seja reflectindo a crise portuguesa (Segunda-feira, atenção à direita, no regresso à dança de Cláudia Dias) ou de uma Europa que se desmorona (Os Últimos Dias da Humanidade, a partir de Karl Kraus, encenação de Nuno Carinhas e Nuno M. Cardoso), enquanto a violência social e política, ou a devastação humana (Manual para mulheres de Limpeza de Lucia Berlin), esteve presente nos livros.

As fracturas sociais foram expostas no cinema (A Lei do Mercado, de Stéphane BrizéI, ou I, Daniel Blake de Ken Loach), bem como os ressentimentos de um país no pós-Guerra Civil Americana (Os Oito Odiados de Tarantino), como se pronunciasse as divisões profundas da era Trump. O desencanto sobre a realidade política (de Apichatpong Weerasethakul a João Tabarra), a decrepitude das cidades (André Cepeda) ou os combates identitários no contexto de um mundo desnorteado foram arte. E em todas as práticas resistiu-se e foram experimentadas novas formas de colaborar e de estar em comunidade, como nos Bregas - Gloriosos fins-de-semana de Xabregas, no atelier dos artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira.

Há um mundo que se vai e outro que se anuncia, sem que ninguém saiba muito bem o que aí vem. É natural o sentimento de perda, impondo-se às vezes de forma nostálgica, como sintoma de algo que parece estar a desaparecer – uma unidade cultural, produtora de um sentido, onde muitos se podiam reflectir um pouco. Por outro lado, nestes tempos confusos, a cultura, e as artes, asseguram uma forma de compromisso com a existência, reflectindo, ampliando ou até antecipando o que acontece à nossa volta, num período histórico de grande experimentação.

Foi um ano onde a morte pairou. Às vezes de forma directa, quase calculada, como no caso das mortes de David Bowie ou de Leonard Cohen, outras vezes de uma maneira alegórica, como no disco dos A Tribe Called Quest, registado na altura em que morreu um dos seus membros Phife Dwag, e principalmente em Skeleton Tree de Nick Cave, marcado pela mais violenta das mortes – a do filho Arthur, de 15 anos, num acidente.

É por isso um disco de canções comovedoras e dramáticas, mas também belas e esperançosas. É a obra de alguém a tentar dar sentido à vida, depois da morte, agarrando-se à sua arte, quando tudo o resto sucumbe. Em grande parte, 2016 foi isso: o ano em que a morte nos agarrou à vida.

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