Animais deixam de ser coisas, mas lei dos maus tratos vai continuar com buracos

Deputados não se entenderam. Sociais-democratas falam em “transformar cada criador num potencial criminoso”.

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Paulo Pimenta

Os deputados da Assembleia da República preparam-se para chumbar, nesta quinta-feira, correcções à lei que em 2014 criminalizou os maus tratos a animais de companhia. Por outro lado, aprovada, e por unamimidade, será a alteração ao Código Civil mediante a qual os bichos vão deixar de ser considerados objectos à luz da lei, para passarem a ter um estatuto intermédio entre as coisas e as pessoas.

Apesar de todos os problemas apontados ao diploma legal dos maus tratos, tanto pelos magistrados que o têm de aplicar nos tribunais, como pelos juristas que o têm analisado, os deputados não se entenderam de forma a colmatar as falhas. Contrários ao agravamento das penas para os maus tratos pretendido pelo PS, pelo Bloco de Esquerda e pelo partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), os comunistas vão unir-se aos sociais-democratas e ao CDS-PP para chumbar estes projectos de alteração legislativa, que permitiriam sanar várias deficiências da lei em vigor. "Senão qualquer dia as penas dos crimes contra animais ainda se tornavam superiores às dos crimes contra as pessoas", observa o deputado comunista António Filipe, admitindo que noutras questões que não implicavam aumento das penas também não houve consenso. 

O projecto do PAN visava, por exemplo, permitir aos tribunais punir quem mate um animal sem lhe ter causado sofrimento – uma possibilidade que a Procuradoria-Geral da República diz que a actual lei não permite.Estender a protecção legal contra os maus tratos aos animais errantes e até, no caso do PAN e do BE, aos restantes bichos que não são de companhia era outro objectivo dos projectos em cima da mesa, que irão esta quinta-feira ser chumbados. 

PAN fala em lobbies

"O Parlamento não está preparado para avançar mais um passo. Continua vigente uma teimosia ideológica ligada a profundos interesses e lobbies corporativos no sector da pecuária. Vivemos ainda o tempo em que os agentes económicos são quem mais ordena”, critica, em comunicado, o deputado do PAN, André Silva, para quem “as agressões e os maus tratos a animais são uma realidade unanimemente aceite no quotidiano da produção pecuária portuguesa."

Já o deputado do PSD Carlos Abreu Amorim acusa este partido, o PS e o Bloco de terem apresentado propostas “absolutamente radicais”: “Não alinhamos em fazer de Portugal um laboratório mundial das causas fracturantes dos animais, nem creio que a maioria dos militantes socialistas se revisse na proposta do seu partido, se a conhecessem.”

Para o social-democrata, as transformações que os três partidos pretendiam introduzir no Código Penal transformavam "cada criador num potencial criminoso", uma vez que puniam os maus tratos não intencionais. “Se uma vaca magoasse uma pata durante o transporte, o dono podia ter de responder por isso em tribunal. São soluções citadinas que nada têm a ver com o modo de vida do país rural”, observa o deputado, acrescentando que as associações do sector pecuário ficaram “aterradas” com as intenções do PS, do BE e do PAN.

Carlos Abreu Amorim reconhece que alguns aspectos da lei dos maus tratos em vigor podiam ser melhorados, mas que para isso não era necessário pôr em causa as actividades pecuárias. Já no que ao estatuto jurídico dos animais diz respeito, o deputado congratula-se com o consenso a que chegaram os partidos. Nos casos de divórcio os bichos “já não podem ser encarados como um sofá ou uma televisão” para efeitos de partilhas, exemplifica.

Neste capítulo, o PAN fala num marco histórico que junta Portugal aos países mais evoluídos nesta matéria, como a Áustria, o primeiro país a aprovar um estatuto jurídico do animal em 1988, mas também França, Suíça, Nova Zelândia e Alemanha.

O Partido Pessoas-Animais-Natureza explica que a alteração ao Código Civil "não vem atribuir aos bichos uma personalidade jurídica tout court", mas cria uma figura jurídica intermédia baseada na existência de um direito difuso: “Até hoje o direito civil português apenas regulava a relação entre pessoas e entre pessoas e coisas. E a natureza objectiva e subjectiva do animal não se coaduna com a natureza das coisas inertes. Foi possível criar uma terceira figura jurídica, a par das pessoas e das coisas – a figura do animal, enquanto ser dotado de sensibilidade e objeto de relações jurídicas." André Silva espera que esta mudança traga robustez à aplicação da lei de maus tratos a animais de companhia. 

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