Há seis mil anos já se fabricavam amuletos com um método usado ainda hoje

Encontrados no Paquistão, pequenos objectos de cobre foram revirados do avesso por uma equipa de cientistas. E descobriu-se como tinham sido fabricados.

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Foram encontrados cinco amuletos. Três estão intactos e dois apenas têm algumas partes D.Bagault e B.Mille

Edificado na planície de Kachi, no Paquistão, Mehrgarh é um dos sítios arqueológicos mais importantes para estudar o período Neolítico no Sul da Ásia. Considerado o povoamento agrícola mais antigo da civilização do vale do Indo, Mehrgarh foi fundado por volta de 7000 a.C. e abandonado em 2500 a.C. Agora descobriu-se que foi em Mehrgarh que foram fabricados os primeiros objectos pelo método de “fundição por cera perdida”, usado para fazer peças com muitos detalhes. Esses objectos são amuletos, que não têm mais de 20 milímetros de diâmetro.

Para chegar a esta conclusão, uma equipa de cientistas franceses, coordenada pelo físico Mathieu Thoury, da Universidade de Versalhes em Saint Quentin-en-Yvelines, fez uma viagem até ao nanomundo dos amuletos, e publicou os resultados na revista Nature Communications.

Antigos e minúsculos – é como podemos classificar, à primeira vista, os amuletos desta história. Mas a sua idade e dimensões podem guardar muitos segredos que não estão ao alcance do olho humano sem a ajuda da ciência. Para sermos exactos, estes amuletos datam do período do Neolítico (entre 12.000 a.C. a 4000 a.C.) e o início da Idade do Cobre (aproximadamente até a 1200 a.C.). Ou seja, têm cerca de seis mil anos. Com uma forma circular, são compostos por seis raios, cada um com dez milímetros.

Até aos nossos dias, apenas chegaram intactos três amuletos. A este conjunto, juntam-se mais dois amuletos da mesma colecção, mas de que só restam algumas partes. A descoberta dos cinco amuletos foi feita em 1985, numa escavação arqueológica em Mehrgarh, que decorreu de 1981 a 1990.

Aliás, a descoberta do povoamento de Mehrgarh ocorreu em 1974, por uma equipa de arqueólogos coordenada por Jean-François Jarrige e Catherine Jarrige. Entre 1974 e 2000, houve várias escavações, que chegaram aos 11 metros de profundidade. Até ao momento, foram encontrados 50 mil objectos, entre os quais cerâmicas, figuras de barro, azulejos e metais.

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O sítio arqueológico Mehrgarh Catherine Jarrige

Com o “resgate” dos amuletos de Mehrgarh do solo, tem-se procurado perceber a sua função. Numa primeira hipótese, a equipa do actual estudo considerou-os “simples ornamentos”, tal e qual como outras centenas de missangas para pulseiras e colares descobertas no povoamento. Contudo, o detalhe como foram feitos os amuletos lançou outra hipótese: será que eram objectos ornamentais que tinham uma função religiosa ou ritual?

Para responder a esta questão, os cientistas procuraram perceber como é que os amuletos tinham sido fabricados. “O fabrico específico pela fundição por cera perdida, em vez do processo clássico de moldes, abriu a possibilidade de uma função mais religiosa e ritual, como amuletos. Segundo esta hipótese, o molde seria escolhido pelo seu ‘proprietário’ e depois convertido em metal por um metalúrgico”, conta-nos o físico Mathieu Thoury. Até agora, não se sabia como os metalúrgicos de Mehrgarh tinham fabricado os amuletos. Nem como isso podia ser mais importante do que parecia.

Afinal, tinham sido fabricados pelo método de fundição por cera perdida. E, ao descobrir-se isto, conclui-se que este método terá surgido no povoamento de Mehrgarh.

Não se pense que este processo apenas foi realizado há seis mil anos. Ainda hoje este é usado para fundição de objectos tão úteis como um porta-chaves, embora tenha sido aperfeiçoado. E no que consiste a fundição por cera perdida?

No Neolítico, começava por se construir os amuletos com cera de abelha, um material que derrete a temperaturas baixas. Depois, os amuletos em cera eram cobertos com argila, formando o molde. A argila era em seguida aquecida, para remover do interior a cera. O metal era despejado no interior da argila, preenchendo o espaço antes ocupado pela cera. Por fim, o molde de argila era partido e retirava-se o objecto.

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Reconstituição do processo de fundição por cera perdida L.Bertrand, T. Séverin-Fabiani, S. Schoeder

Durante o fabrico de uma peça, era necessário criar canais de vazamento de várias dimensões, para libertar gases que, de outra forma, podiam danificar a peça. Este processo permitia – e ainda hoje permite – criar peças com muitos detalhes. Foi então assim que os habitantes de Mehrgarh fizeram os minúsculos amuletos.

Para descobriu como os amuletos foram fabricados, a equipa de Mathieu Thoury usou a espectrometria de fotoluminescência – método que analisa a emissão luminosa dos componentes dos objectos, nomeadamente a radiação ultravioleta e infravermelha. Assim, foi possível visualizar microestruturas invisíveis em microscópios convencionais.

Mas nem todos os componentes dos amuletos foram facilmente desvendados. Aliás, foram necessários cerca de 15 anos, depois de terem sido feitas melhorias à fotoluminescência, para ser possível uma “análise mais pormenorizada” dos amuletos, como salienta o artigo científico.

Havia um elemento mistério

O caminho até à descoberta do processo de fabrico dos amuletos teve duas fases. Num primeiro momento, há cerca de 15 anos, viu-se em radiografias que os amuletos eram constituídos por cobre puro. Este elemento formava umas ramificações (dendrites), que estão escondidas na morfologia dos raios do amuleto. Desde então sabia-se também que existia mais um elemento que se ligava ao cobre, mas não se sabia qual era.

“Num passo preliminar, optimizámos parâmetros específicos de fotoluminescência para contornar os ‘obstáculos’ específicos causados à análise de materiais antigos, como a sua forte heterogeneidade”, explica-nos Mathieu Thoury. Acrescenta que, em paralelo, ele e os seus colegas começaram a fazer estudos no sincrotrão Soleil (em França), uma máquina que gera poderosos feixes de raios X e permitiu aprofundar a estrutura dos amuletos até aos 200 nanómetros. “Estávamos com alguma dificuldade em decifrar o processo metalúrgico dos amuletos através das técnicas que normalmente se usam neste tipo de materiais”, recorda.

Juntando as análises feitas com a radiação por sincrotrão e a fotoluminescência, descobriu finalmente o elemento mistério: o óxido cuproso. Este misterioso elemento (que ocupava o espaço entre as dendrites, ligando o cobre) tornou-se mais visível através da observação da radiação infravermelha. Desta forma, confirmou-se que o amuleto tinha sido formado por uma liga de cobre e óxido cuproso (uma mistura dita de “eutéctica”, que se funde facilmente).

Esta mistura deu-se durante o processo de solidificação das dendrites. Primeiramente, as dendrites eram apenas compostas por cobre puro e, depois da solidificação à temperatura ambiente, formaram-se interdendrites de óxido cuproso (que oxida facilmente ao ar). A estas dendrites dentro das dendrites, a equipa chama “estruturas dendríticas fantasmas” e que são frequentes em estruturas de cobre antigas.

O óxido cuproso ter-se-á formado acidentalmente nos amuletos, numa fase de fundição a 1066 graus Celsius. “O cobre absorveu uma pequena quantidade de oxigénio durante o processo, o que poderá explicar a mistura de microestruturas observadas”, salienta um resumo da Nature Communications.

Deixados no solo durante largos anos, no período de abandono de Mehrgarh os amuletos também acumularam uma percentagem extra de óxido cuproso. “Os contrastes observados nos resultados da fotoluminescência detectaram diferentes malformações nos cristais entre as duas cuprites [o óxido cuproso e o cobre]: uma variação do conteúdo de átomos de oxigénio na mistura eutéctica e os resultados da corrosão posterior”, explica o comunicado da equipa.

Outra das conclusões foi que os amuletos foram fabricados de uma única vez, e não em partes separadas, devido precisamente à fundição por cera perdida. “A revelação do processo metalúrgico deste amuleto permitiu descobrir que as escolhas técnicas dos metalúrgico de Mehrgarh levaram à invenção do processo de fundição por cera perdida”, resume ao PÚBLICO Mathieu Thoury. No artigo científico, acrescenta-se que a preservação dos amuletos ao longo de seis mil anos mostra que a fundição a cera perdida é um “sucesso irrefutável e permanente”.

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O estudo demonstrou que Mehrgarh era uma civilização inovadora DR

“Mehrgarh era uma civilização crucial para a inovação tecnológica durante o período Neolítico e da Idade do Cobre”, sublinha o artigo científico. E onde estão agora os amuletos de Mehrgarh? Neste momento, estão a ser restaurados e estudados em França. Depois, irão regressar ao Departamento de Arqueologia e Museus do Paquistão.

Quanto a Mehrgarh, que ocupa cerca de 250 hectares, é impossível visitar o local devido à situação geopolítica do país vizinho, o Afeganistão. “Mais dramático do que ser impossível visitá-lo, é a destruição parcial do sítio”, alerta o coordenador do estudo sobre os danos do conflito afegão. Apesar de sítio arqueológico importante da região, a sua classificação como Património Mundial da UNESCO está pendente desde 2004. 

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