Comércio livre é o alvo dos primeiros dias de Trump

A equipa de transição (a ante-câmara do governo) deve incluir lobistas da indústria, republicanos radicais e também moderados. Aparentemente, um grupo de interesses contraditórios, mas já têm um documento com prioridades bem definidas.

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Donald Trump e o seu vice-Presidente, Mike Pence, na noite das eleições Chip Somodevilla / AFP

E, ao terceiro dia, a equipa de transição do Presidente eleito, Donald Trump, já tem existência. Pelo menos no mundo virtual. É em greatagain.gov que são dadas algumas pistas para aquilo que podem vir a ser os primeiros dias da futura Administração, que tem tomada de posse marcada para 20 de Janeiro. Com o país – e o mundo – ainda em processo de digestão das eleições presidenciais que deram a vitória ao magnata nova-iorquino, vai ganhando forma a presidência de Trump.

A imprensa norte-americana tem organizado um autêntico desfile de nomes que podem integrar a equipa de transição de Trump. As especulações que animam as páginas dos jornais por estes dias reflectem o estado de incerteza que reina sobre os EUA e que só podia ser criado por um candidato que trocou as voltas aos analistas mais reputados. A fazer fé no exército de fontes anónimas que habita as páginas dos jornais, a equipa que vai organizar a passagem de testemunho na Casa Branca pode incluir lobistas da indústria, republicanos radicais e republicanos moderados. Para acelerar o processo, Trump substituiu esta sexta-feira o anterior líder da equipa, Chris Christie, pelo vice-Presidente eleito, Mike Pence, de acordo com o New York Times. O objectivo é utilizar a boa rede de contactos em Washington de Pence, dizem fontes próximas da campanha.

A pergunta que todos se fazem é quais vão ser as prioridades do 45.º Presidente dos EUA assim que se sentar à secretária da Sala Oval. Um exercício habitualmente difícil torna-se praticamente impossível com Trump, cujo programa durante a campanha implica revoluções profundas em áreas como o comércio internacional, as migrações, segurança interna e política de defesa. O site Politico teve acesso a um documento interno elaborado pela equipa de transição em que são apontadas as medidas para os primeiros cem dias da nova Administração.

Os tratados comerciais são o grande alvo dos primeiros dias do Presidente Trump. A primeira iniciativa é o abandono da Parceria Trans-Pacífico (conhecida como TPP), um tratado de comércio livre assinado em Fevereiro e que junta 12 países da Ásia e da América do Sul, mas que ainda não foi ratificado. Segue-se a abertura de um processo de renegociação dos termos do Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA), em vigor desde 1994 e que junta os EUA, México e Canadá. O documento dá o dia 200 da presidência como a data limite para que as negociações sejam bem-sucedidas. Caso contrário, os EUA abandonam aquele que, em campanha, Trump qualificou como “o pior tratado comercial da história”.

O fim do NAFTA e até mesmo a sua renegociação podem ter efeitos graves na indústria automóvel norte-americana que, lembra o Politico, investiu mais de 24 mil milhões de dólares (22 mil milhões de euros) em infraestruturas no México desde 2010. Os parceiros dos EUA não fecham a porta a alterações ao acordo. “Se os americanos querem falar sobre o NAFTA, estou mais do que contente em fazê-lo”, disse o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. O Presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, manifestou vontade em reunir-se pessoalmente com Trump ainda antes da tomada de posse. Sobre o acordo de comércio livre com a União Europeia (o TTIP) não há qualquer referência, mas todos os sinais apontam para o seu enterro, ainda antes de ver a luz do dia.

A China é outro dos dossiers que Trump quer na sua mesa logo no primeiro dia para concretizar uma velha promessa – declarar a segunda maior economia do mundo um “manipulador de moeda”. No limite, esta medida pode implicar a aplicação de tarifas elevadas às importações de alguns produtos chineses e, segundo alguns analistas, representar o início de uma guerra comercial entre as duas potências económicas. Porém, não é forçoso que assim seja. Segundo uma lei de 1988, o Tesouro norte-americano faz uma avaliação periódica aos principais parceiros comerciais dos EUA em que verifica se estão a manipular a moeda de forma a ganhar uma vantagem nas trocas comerciais. Obama tem sido pressionado a rever a posição em relação à China, mas apenas mantém o país numa lista de vigilância. Na prática, o rótulo de “manipulador de moeda” abre negociações com o país em questão para que ele tome providências para acabar com essa distorção – foi o que acabou por acontecer com o Japão, Taiwan e China nos anos 1980 e 90.

“Esta promessa é fácil de manter”, disse ao Politico o analista do American Enterprise Institute, Derek Scissors. “Não significa nada apenas por si só, não implica [a aplicação de] tarifas.” Lembra o correspondente do Financial Times em Pequim, Tom Mitchell, que “a maior parte do comércio da China com os EUA está protegida de acções unilaterais pela pertença de Pequim à Organização Mundial do Comércio”.

Ainda no campo da economia, a presidência de Trump deverá ficar marcada por uma era de desregulação e cortes de impostos. Quem o diz é Harold Hamm, o principal conselheiro de Trump para questões energéticas, que esteve com o magnata na Trump Tower a celebrar a vitória eleitoral. “Funcionou bem com Ronald Reagan baixar os impostos, pôr o povo americano outra vez a trabalhar e desregular”, disse Hamm ao FT. O conselheiro que é também presidente executivo da Continental Resources, uma das principais petrolíferas dos EUA, não afasta a possibilidade de integrar a Administração Trump como secretário para a Energia.

Lobistas e radicais

Para já, as atenções estão concentradas na equipa de transição, da qual geralmente saem vários nomes para o executivo. Segundo o documento divulgado pelo Politico, cuja veracidade não foi confirmada pela campanha de Trump, a equipa que vai ter um papel crucial na escolha da nova Administração e na nomeação de quatro mil funcionários públicos é composta sobretudo por lobistas e consultores.

Há quem veja uma contradição entre a composição da equipa e as garantias dadas por Trump de que iria acabar com a corrupção e a promiscuidade entre política e negócios em Washington. “Esta ideia de que ele era um outsider que iria destruir o establishment político e secar o pântano eram afinal as deixas de um vigarista”, diz o ex-escritor de discursos de George W. Bush, Peter Wehner, citado pelo New York Times.

Mas nem só de lobistas se faz a equipa que vai preparar a entrada de Trump na Casa Branca. À frente das nomeações para a Agência para a Protecção do Ambiente está Myron Ebell, um negacionista das alterações climáticas. Ebell é director da Cooler Heads Coalition, um grupo de organizações não-governamentais cuja missão é “questionar o alarmismo do aquecimento global e fazer oposição às políticas de racionamento energético”, diz a revista Scientific American. Trump chegou a dizer que o aquecimento global é um esquema “criado pela China para retirar competitividade à indústria americana” e prometeu reverter o Acordo do Clima de Paris. À frente da segurança nacional está o ex-congressista Mike Rogers que em 2013 apresentou uma proposta para estender os poderes de vigilância na Internet que, na altura, enfrentou a resistência de Obama por pôr em causa direitos e liberdades civis.

A partir de agora e até à tomada de posse, são estes homens – e muito poucas mulheres – que estão responsáveis por quatro mil nomeações para vários ramos do executivo e agências governamentais. O processo é complexo e envolve não só as nomeações e o aconselhamento para os primeiros tempos da presidência, como também a organização quotidiana, como a instalação de escritórios e de uma rede de Internet para todos os gabinetes. O período de transição nem sempre corre da melhor forma, especialmente quando a passagem é feita entre presidentes de partidos rivais. Quando os funcionários de George W. Bush chegaram à Casa Branca notaram que em muitos dos teclados de computador tinha sido retirada a tecla W. Segundo o Guardian, Obama avisou os seus colaboradores para não pregarem partidas aos seus sucessores.

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