Hélio na Tanzânia, uma boa notícia para todos nós

Tem inúmeras aplicações – uma das principais é nas máquinas de ressonância magnética para exames médicos. Mas receia-se que as reservas conhecidas esgotem. A Tanzânia junta-se ao punhado de países que têm no seu solo reservatórios de hélio que justifiquem a extracção.

Foto
VIKTOR DRACHEV/AFP

No dia-a-dia, damos por ele nos balões das festas ou, quando o inspirarmos, na voz fininha cómica com que ficamos. Mas o hélio tem uma multiplicidade de aplicações sérias — em aparelhos de ressonância magnética para imagiologia médica, em foguetões espaciais ou no acelerador de partículas que “caçou” o bosão de Higgs, o LHC, em Genebra. Acontece que é um recurso limitado, escasso até, por isso a descoberta recente de grandes reservatórios de hélio na Tanzânia é uma boa notícia face à procura crescente deste recurso natural.

Mais: é a primeira vez que se encontram reservatórios de hélio sem estarem ligados a outros hidrocarbonetos. As descobertas anteriores, além de acidentais, foram sempre em furos de extracção de petróleo e gás natural. E o hélio era pouco.

No Universo, é o segundo elemento mais abundante, depois do hidrogénio. No Sol (e nas outras estrelas) também abunda, onde aliás foi descoberto como elemento químico em 1868, durante um eclipse solar. Mas na Terra não há muito (foi aqui isolado pela primeira vez em 1895, num mineral). E, ainda que esteja constantemente a ser gerado pelo decaimento radioactivo de elementos pesados na crosta terrestre, como o urânio e o tório, isso ocorre a um ritmo bastante lento.

Em 2010, o físico norte-americano Robert Richardson, um dos galardoados com o Prémio Nobel em 1996 pela descoberta da superfluidez do hélio-3 (a temperaturas extremamente baixas), já tinha alertado que o hélio estava a esgotar-se. Em 2015, a Associação Médica Britânica também avisou para o risco de as aplicações médicas ficarem sem hélio e pedia que se deixasse de encher balões de festa com este gás, o que considerava um “desperdício colossal”.

O hélio tem uma série de características que o tornam único. Mais leve do que o ar (daí que sirva para encher balões, tanto os das festas como os meteorológicos e científicos), não é inflamável nem reage com outros elementos químicos. Também não é tóxico nem radioactivo nem tem cor nem cheiro.

Foto
Balão científico para estudo das camadas superiores da atmosfera Equipa HySICS/LASP

Perto do zero-absoluto (a temperatura mais baixa possível, que é cerca de 273 graus Celsius negativos), o hélio fica líquido. A maioria dos elementos químicos tornam-se um sólido, se arrefecidos a temperaturas tão baixas. O hélio não. Estas propriedades permitem que tenha na criogenia (o arrefecimento a temperaturas muito baixas) um dos seus usos principais.

É como agente criogénico que entra em milhões de máquinas de ressonância magnética espalhadas pelo planeta, arrefecendo os seus magnetos. Tal como entra no sistema de arrefecimento do acelerador de partículas LHC, instalado num túnel de 27 quilómetros de perímetro na fronteira franco-suíça, perto de Genebra. Ou nos reactores nucleares.

Na indústria aeroespacial, serve por exemplo para pressurizar o combustível líquido dos foguetões. Estão em desenvolvimento algumas aeronaves híbridas (que combinam tecnologias mais leves e mais pesadas do que o ar) e usam hélio — como o Airlander 10 (que caiu há semanas num voo de teste) e o Lockheed Martin P-791, vistas como possíveis transportes de carga do futuro.

O fabrico de muitas outras tecnologias necessita de hélio, como o de fibras ópticas e componentes semicondutores, tal como certos processos de soldadura. Para mergulhos profundos, usa-se hélio gasoso misturado com oxigénio. E a mistura destes gases é usada no tratamento médico de problemas respiratórios.

Resumindo, o hélio é essencial em muitas áreas, desde a medicina, a investigação científica e a exploração do espaço até ao fabrico de tecnologias. “Para muitas dessas aplicações não existe substituto do hélio. É um recurso não renovável encontrado em quantidades recuperáveis apenas nalguns locais à volta do mundo, muitos dos quais a serem exauridos”, lê-se no site do Gabinete de Ordenamento do Território do Departamento do Interior dos Estados Unidos, que opera uma fábrica de enriquecimento de hélio (tornando-o em crude, contendo assim já 50% a 70% deste gás) e um reservatório subterrâneo perto de Amarillo, no Texas.

Este gabinete gere a Reserva Federal de Hélio dos EUA (o hélio considerado estratégico). Fornece mais de 40% da procura interna nos EUA, vendendo-o a várias empresas de refinação, que depois o purificam. É responsável, em termos mundiais, por 30% da produção de hélio.

Amarillo auto-intitula-se a capital mundial do hélio. Tem um Monumento ao Hélio desde 1968, no centenário da descoberta deste elemento, recordava o jornal The New York Times num artigo de 2012, ano de escassez. Geralmente, a importância deste gás passa despercebida da população, excepto se não houver balões em comemorações públicas e festas, contava ao jornal Jonathan Erwin, da cadeia de lojas Wally’s Party Factory: “Os clientes entram na loja num dia em que não há hélio suficiente, dizemos-lhes que há uma crise ou escassez e, antes de mais, nunca ouviram falar disso e depois pensam que estamos a inventar.”

De viagem no rifte africano

Viajemos agora até à Tanzânia e a 2013, quando dois geólogos australianos, Thomas Abraham-James e Josh Bluett, seguiam de jipe pela savana africana. Iam visitar uma eventual zona de exploração de ouro. No banco de trás do jipe ia um livro de geologia, Industrial Minerals in Tanzania, An Investor’s Guide, e um dos geólogos aproveitou para lhe dar uma vista de olhos. Qual não foi o espanto: tinha quatro páginas dedicadas ao Hélio e a Outros Gases Naturais.

O guia tinha informações pormenorizadas sobre sete locais na Tanzânia com concentrações elevadas de hélio (entre 4,4 e 18,2% por volume). “As concentrações eram tão significativas que presumiram que havia um erro, e que as casas decimais estavam no sítio errado”, diz um artigo sobre a descoberta na revista Gasworld, de Junho. Mais tarde, os geólogos encontraram os relatórios geológicos sobre seis dos sete locais, na biblioteca dos Serviços Geológicos da Tanzânia. Elaborados em 1957 pelo geólogo T. C. James, dos Serviços Geológicos de Tanganica (então uma colónia britânica), os relatórios confirmavam as concentrações de hélio e os locais dos depósitos referidos no guia.

Embora se soubesse da presença de hélio na Tanzânia há mais de 55 anos, esse conhecimento não foi aproveitado economicamente — até os dois geólogos australianos deitarem mãos ao trabalho. “Assim começou a procura de hélio na Tanzânia e a formação da Helium One”, a empresa criada por Thomas Abraham-James e Josh Bluett, na Noruega.

Nos relatórios dos anos 50, dizia-se que as concentrações de hélio tinham sido medidas em fumarolas, pontos de escape à superfície da crosta terrestre de vapor de água e gases. E que essas fumarolas, explica o artigo na Gasworld, se situavam no Rifte do Leste Africano, zona em que a crosta se está a afastar em direcções opostas: neste caso, a placa africana está ali a dividir-se em duas. Este fenómeno de afastamento é caracterizado por falhas, fracturas e vulcanismo (os famosos vulcões do Leste da África).

Agora havia que medir novamente as concentrações de hélio, para verificar se se mantinham semelhantes às antigas. Para tal, a Helium One contratou os serviços de uma universidade britânica. Foi assim que Thomas Abraham-James, que é o presidente da empresa, levou Pete Barry, da Universidade de Oxford, até aos depósitos que tinha “redescoberto” com o colega australiano e recolheram amostras de gases.

Foto
Thomas Abraham-James a recolher amostras de hélio na Tanzânia Pete Barry

A partir dos teores de hélio calculados pela Universidade de Oxford e de outros dados antigos, como perfis sísmicos das estruturas onde o gás está aprisionado, a empresa norueguesa fez uma primeira avaliação dos recursos existentes numa área na região de Rukwa, no Sul da Tanzânia. Utilizaram-se portanto as mesmas metodologias do sector do petróleo. A equipa, que inclui também cientistas da Universidade de Durham (no Reino Unido), já divulgou esses resultados numa conferência científica.

Para a área de prospecção em Rukwa, estima-se — com 50% de probabilidades — que seja possível extrair 1500 milhões de metros cúbicos de hélio, diz ao PÚBLICO Thomas Abraham-James. Já com 90% de probabilidades de recuperar esse hélio, as estimativas apontam para 500 milhões de metros cúbicos.

“Calculámos o que se designa por ‘recursos prospectivos’, o que significa que ainda se está em fase de pesquisa e é preciso fazer mais perfurações de teste, para que sejam convertidos em ‘reservas’ que possam ser extraídas. Mas estamos confiantes de que o hélio está lá”, ressalva Thomas Abraham-James. “A concentração de hélio é de 2,6%, mas esta estimativa é por baixo e pensamos que as concentrações podem ir até aos 4,2%.”

Numa dúzia de países

Esta descoberta é importante por múltiplas razões, frisa Thomas Abraham-James. “As reservas mundiais estão em declínio e o hélio, uma vez na atmosfera, escapa-se directamente para o espaço e perde-se para sempre. Pode [até] dizer-se que as reservas mundiais são grandes, no entanto a maioria não pode ser extraída porque as concentrações são muito baixas (inferiores a 0,5%) e, por isso, são subeconómicas [não rentáveis]”, diz.

“O preço do hélio tem flutuado bastante, uma vez que os EUA começaram a leiloar a sua reserva. Prevê-se que em 2021 o Governo dos EUA deixe de fornecer hélio ao mercado mundial, porque as suas reservas serão muito baixas e estará a guardar o que restar para uso estritamente governamental. Isto é importante porque os EUA têm sido o principal fornecedor”, prossegue o geólogo sobre a importância da descoberta na Tanzânia, concluindo: “Hoje, todo o hélio é um subproduto da produção de gás natural. Os nossos projectos na Tanzânia não têm gases naturais ou outros hidrocarbonetos, e os gases mais abundantes são azoto, hélio e árgon. Por isso, o nosso impacto ambiental é menor e não estamos dependentes de mudanças nos indicadores da procura de gás natural.”

Ora 1500 milhões de metros cúbicos de hélio dos depósitos encontrados na Tanzânia, nas estimativas da equipa, dariam para encher 600.000 piscinas olímpicas, diz um comunicado da Universidade de Oxford. “Isto é quase sete vezes a quantidade total de hélio consumida globalmente por ano e é suficiente para encher 1,2 milhões de aparelhos de ressonância magnética, quando convertido em hélio líquido”, frisa no comunicado outro autor do trabalho, Chris Ballentine, daquela universidade.

“Para pôr esta descoberta em perspectiva, o consumo global de hélio por ano é de cerca de 225 milhões de metros cúbicos e a Reserva Federal de Hélio dos EUA, que é o maior fornecedor mundial, tem hoje uma reserva de apenas 685 milhões de metros cúbicos. As reservas totais conhecidas nos EUA situam-se à volta de 4330 milhões de metros cúbicos”, acrescenta Chris Ballentine. E as reservas mundiais estavam calculadas em 35.200 milhões de metros cúbicos, em 2015.

Por agora, a Helium One ainda não vende hélio. Só durante o próximo ano, avança Thomas Abraham-James, é que a sua empresa deverá começar fazer furos com fins comerciais, entre 500 a 2500 metros de profundidade. Antes disso, diz, é preciso obter mais dados geofísicos e geológicos e completar os estudos de impacto ambiental e social.

A Helium One quer produzir hélio líquido puro. “O Governo dos EUA vende hélio em crude por 92 euros por cada 1000 pés cúbicos [28 metros cúbicos]. Nós queremos produzir hélio líquido puro, que é muito mais valioso. Em comparação, o gás natural é cerca de 2,5 euros cada 1000 pés cúbicos”, diz. “Neste momento, os grandes produtores mundiais são o Qatar, os Estados Unidos e a Argélia. Esperamos pôr a Tanzânia no topo dessa lista num futuro próximo.”

Além de Rukwa, o projecto mais avançado, a empresa tem outras duas áreas de prospecção na Tanzânia (Eyasi e Balangida). “Temos conhecimento de mais de 20 fumarolas com altas concentrações de hélio na Tanzânia. Estão nas nossas áreas de projecto (Rukwa, Eyasi e Balangida) e noutros locais. As fumarolas estão ao longo da parte tanzaniana do Rifte do Leste Africano”, diz o geólogo australiano.

Por que é que o contexto geológico destas três áreas é especial na produção e acumulação de hélio com interesse económico? “Têm os ‘ingredientes’ necessários”, responde Thomas Abraham-James. Primeiro, têm as “rochas geradoras” deste gás: “O hélio é libertado de granitos antigos, e a Tanzânia tem dos granitos mais antigos do planeta.” Depois, as três áreas têm em acção não só o “mecanismo de libertação” deste gás como essa libertação está a ser acelerada pelo vulcanismo na região: “O Rifte do Leste Africano quebrou os granitos e libertou o hélio. A actividade vulcânica nas proximidades aqueceu os granitos e acelerou a libertação de hélio.” Por fim, há armadilhas: “Bacias sedimentares aprisionam o gás hélio em reservatórios, tal como no petróleo.”

Foi em 1903 que o hélio foi detectado pela primeira vez num poço de gás natural, no Kansas (EUA). Tinha a estranha particularidade de não arder. O mundo deu-lhe entretanto muitos usos. Mas, desde então, reservatórios de hélio, em concentrações que justifiquem a extracção, descobriram-se só numa dúzia de países.

Sugerir correcção
Comentar