Enquanto Safah refaz a vida em Portugal Muktar deverá receber ordem para sair
A nova vaga de refugiados está a deixar para trás os exilados políticos que procuram protecção em Portugal? Os números não o confirmam, mas é grande o contraste entre quem pede asilo a Portugal e quem já chega como refugiado.
A vida ficou para trás, em Bagdad, onde Safah e Nidaa deixaram a família, os amigos, o trabalho. Na Marinha Grande, o casal encontrou aquilo a que agora dá mais valor – a paz –, depois das perseguições de que foi alvo no Iraque por um deles ser xiita. E depois de atentados e bombardeamentos que se mantêm no quotidiano de quem ficou. “Ainda ontem houve um grande atentado no centro de Bagdad”, diz Nidaa, numa entrevista recente no apartamento que a Santa Casa da Misericórdia da Marinha Grande, enquanto instituição acolhedora, arranjou para este casal como dezenas de outras organizações pelo país fizeram com outros refugiados.
Safah e Nidaa vieram num voo da Grécia no mês de Dezembro, no mesmo dia em que chegaram igualmente pessoas da Itália, os primeiros refugiados acolhidos ao abrigo do plano de recolocação definido pela União Europeia (UE). Desde então, chegaram 237 pessoas a Portugal – a maioria proveniente de conflitos da Síria, Iraque e Eritreia. Na próxima semana, o ritmo previsto de chegadas de pessoas como Safah e Nidaa vai aumentar, passando a haver mais do que um voo por semana. São pessoas seleccionadas que viajam com a garantia de virem a ter o estatuto de refugiado (por motivos de perseguição) ou de protecção humanitária (por motivos de conflito) reconhecido.
Entre o mar de gente que foge dos seus países, como Safah e Dinaa fugiram do Iraque, Muktar e a Gâmbia não estão na lista de prioridades na resposta a dar para a concessão do estatuto de refugiado ou de protecção internacional. Também Muktar deixou a vida para trás. Mas em circunstâncias muito diferentes.
Retido no aeroporto
Quando Safah e Nidaa chegaram da Grécia em Dezembro, Muktar já pedira asilo a Portugal há dois meses, um pedido que lhe foi recusado, logo à chegada, pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Ficou retido no aeroporto, e recorreu da decisão do SEF. Enquanto esperava a decisão do tribunal administrativo, esteve a viver no Centro de Acolhimento do Centro Português para os Refugiados (CPR) na Bobadela (Loures), aonde agora apenas vai para frequentar as aulas de Português, quatro dias por semana. Nesta fase, o apoio para a sua permanência vem da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, ao abrigo de um protocolo entre organizações que articulam o apoio dado aos requerentes de asilo.
Em Fevereiro, recebeu a segunda má notícia: o tribunal dera razão ao SEF e recusara o estatuto. Muktar teria de abandonar o país em 20 dias, se o caso não tivesse entretanto seguido para um tribunal superior. Neste momento, Muktar – o nome não é verdadeiro, por motivos de segurança – tem uma autorização temporária para permanecer em Portugal, renovável de dois em dois meses até o seu processo terminar.
“Não posso continuar a viver assim”, diz a pensar sobretudo no que de mais precioso deixou para trás na Gâmbia: a mulher e os cinco filhos, mais dois sobrinhos órfãos que adoptou e uma enteada. “Cometi um erro terrível do qual me vou arrepender para o resto da minha vida. Foi o de ter deixado toda a minha família para trás.”
O que mais o atormenta é essa culpa, vivida a milhares de quilómetros, ainda mais agora que a situação se agravou no seu país desde Abril. Tem medo de que alguma coisa lhes aconteça. Sente-os desprotegidos. Escolheu Portugal por ser “o país mais próximo do continente africano”. Sabia que era em Portugal, por ser o primeiro país da União Europeia onde aterrou, que devia pedir protecção. E que, sendo esse pedido recusado, não poderia voltar a fazê-lo noutro Estado europeu, de acordo com a resolução de Dublin. Mas acreditou. Agora, se vir a recusa confirmada e uma ordem de saída em poucas semanas, não sabe o que fazer. “As pessoas não sabem, mas a Gâmbia é o inferno”, diz.
Mas foi por ter vindo a partir do Senegal, para onde tinha fugido nove meses antes, que o SEF justificou a recusa, dizendo que ele poderia ter ficado nesse país, um país seguro ao contrário da Gâmbia. Porém, mesmo no Senegal, não está em segurança, garante Muktar. As fronteiras são quase inexistentes, estando a Gâmbia totalmente cercada por terra pelo Senegal, e qualquer pessoa ligada ao regime podia vir prendê-lo. “As próprias autoridades do Senegal aconselharam-me a ficar escondido. Para mim, era como viver numa prisão.” Durante nove meses não pôde comunicar com ninguém. Andou clandestino. Em Outubro, apanhou um voo para Lisboa. A sua situação era de emergência. “Escolhi Portugal, aonde vim pedir asilo por razões políticas. Não sou um migrante económico. Eu vivia bem na Gâmbia antes de ser perseguido.”
Muktar é um empresário influente e estava ligado à oposição da Gâmbia. Quando fugiu em Janeiro de 2015, o seu nome estava a ser indirectamente envolvido numa tentativa falhada de derrubar o Presidente Yahya Jammeh. Jammeh foi eleito em 1996, dois anos depois de liderar um golpe de Estado contra o então Presidente Dawda Jawara, e foi de novo eleito em 2001, 2006 e 2011, em votações contestadas. A situação já era grave, diz Muktar, mas agravou-se muito em Abril, quando vários activistas da oposição foram presos por organizarem uma manifestação pacífica e o líder da oposição Solo Sandeng morreu na prisão, em circunstâncias não esclarecidas.
A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional consideram que este caso realça “a natureza repressiva do regime”. O Departamento de Estado norte-americano condenou “o Governo da Gâmbia pela resposta grave aos protestos pacíficos”. John Kerry apelou ao “fim imediato da violência” e a todos os gambianos para darem provas de contenção e calma. E já em Maio, o Parlamento Europeu aprovou unanimemente uma resolução no sentido de ver a Comissão Europeia a os Estados-membros decretarem o congelamento de toda a assistência financeira não humanitária à Gâmbia e sanções direccionadas aos seus dirigentes.
A comunidade internacional começa a despertar para a gravidade da situação, considera Muktar. “Mas a situação é muito grave há muito tempo”, insiste. Num relatório publicado há cinco meses, a Human Rights Watch baseia-se em factos documentados entre 2013 e 2015 para descrever um país que “reprime de forma brutal qualquer voz dissidente” desde que Yahya Jammeh assumiu o poder. “Execuções sumárias são levadas a cabo pelas forças de segurança do Estado e grupos paramilitares, que também detêm pessoas de forma arbitrária, praticam a tortura, e serão responsáveis pelo desaparecimento de elementos ligados à oposição e pela criação de um clima de terror que leva muitos a fugir”, descreve a organização.
Para Muktar, a situação é grave também pelo medo que invade a vida das pessoas. “Não temos o direito de dizer absolutamente nada. Mesmo familiares e amigos afastam-se de pessoas que criticam o Governo. Acontece entre irmãos, entre pais e filhos.” Também por isso, a sua família está tão isolada. “Quase ninguém se aproxima da minha mulher. Só o meu irmão e a minha sogra.”
Muktar não veio por nenhuma das capitais europeias por onde passa a maioria dos refugiados que pedem asilo no âmbito da recolocação. Mas esperaria a mesma protecção e a regularização da sua situação em Portugal, através da concessão de estatuto que lhe valide a residência, para que possa ter trabalho e acesso ao Serviço Nacional de Saúde, como os refugiados trazidos em voos da União Europeia. Quer proteger a família de uma situação que, na grande maioria, o mundo desconhece.
Estará a nova vaga de refugiados a deixar para trás os exilados políticos que procuram protecção em Portugal? Os números não parecem confirmar isso: os pedidos aumentaram muito entre 2014 e 2015 e não foram acompanhados ao mesmo ritmo pelas respostas positivas. Mas não baixaram. Em 2015, o SEF reconheceu o estatuto de refugiado ou de protecção subsidiária a 193 pessoas, mais 39 do que no ano anterior. Já em 2016, até esta semana, já tinham sido reconhecidos 158 estatutos, podendo o número global, no final do ano, ser bastante superior ao do ano passado, se se mantiver o ritmo actual de concessões.
Muktar perde alento a cada dia que passa. Será que ainda acredita? Não olha para o futuro. Apenas para o presente e para aquilo que imagina ser a vida dos seus filhos. “Era eu que os sustentava. Era eu que estava lá para eles. E agora estão há mais de um ano sem mim. Estou a sofrer muito, por não estar a fazer nada por eles.”
Para Safah e Nidaa, o pior ficou para trás
Safah e Nidaa refazem a sua vida em Portugal. Safah trabalha numa fábrica de moldes e Nidaa num lar de idosos. Viviam numa grande casa em Bagdad com toda a família – pais, irmãos e sobrinhos. E foi nessa casa que a mãe de Nidaa foi assassinada por milícias em 2004. Nidaa era secretária num jornal de Bagdad. Safah trabalhava como pintor, na construção civil. Em 2015, decidiram partir. Saíram no escuro da noite, e em segredo, para o aeroporto. Aterraram na Turquia, onde finalmente deram notícias à família. E quase iam ficando no Mar Egeu entre a Turquia e Grécia, quando a embarcação em que seguiam naufragou. Salvaram-se.
Chegados à Grécia, pediram para vir para Portugal. Era a primeira escolha de Safah, numa lista que lhes foi apresentada entre países como Alemanha, França, Espanha, Finlândia, Suécia e Holanda. “Eu queria Portugal”, diz com um sorriso Safah. Não sabe bem explicar porquê. Do país só conhecia Cristiano Ronaldo. Agora, já sabe dizer umas poucas palavras de português. Tudo leva o seu tempo. Uma aprendizagem intensiva do português prevista para os refugiados acolhidos em Portugal está aquém das expectativas, pelo menos para este casal do Iraque. As aulas estão interrompidas há algumas semanas e o casal continua a precisar de um intérprete para comunicar. Já estão inscritos no centro de saúde e têm toda a situação a ser regularizada e o acompanhamento médico necessário, sobretudo para Nidaa, que será mãe do primeiro filho em Julho. O pior ficou para trás. E ambos sorriem.