África do Sul: 22 anos de democracia para brancos e não-brancos

A 27 de Abril de 1994, a África do Sul realizou as primeiras eleições por sufrágio universal, com o voto aberto à participação de cidadãos de todas as raças. Foi o Dia da Liberdade, que o país transformou em feriado nacional.

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As comemorações da eleição de Nelson Mandela para a Presidência da África do Sul, a 27 de Abril de 1994 REUTERS/Peter Andrews

A 27 de abril de 1994, os sul-africanos negros puderam votar. As eleições e o multipartidarismo não eram novidade no país. Os brancos já gozavam da "Sua Democracia" desde 1910. Aquela que era a primeira eleição para 80% da população era a vigésima sétima para os brancos e a terceira para indianos e mestiços. Chegava assim o fim do apartheid. O fim que tinha sido iniciado com a chegada de FW de Klerk à Presidência da África do Sul.

A África do Sul dos anos 80 era um país em estado de emergência. Um país banido do palco internacional, suspenso das Nações Unidas e com um severo embargo económico. Nas ruas, os tanques, a polícia e o exército combatiam a população que respondia com pedras, paus e pneus queimados. Em 1989, Klerk fez o que nunca o ex-Presidente Botha fez e reuniu-se com o prisioneiro político Nelson Mandela. Começava assim um processo de negociação e reconciliação liderado por estes homens. Uns meses após este primeiro encontro, a 11 de Fevereiro de 1990, Mandela saía em liberdade. Durante 27 anos não houve uma única imagem publicada do prisioneiro número 46664. Winnie Mandela atravessou o portão de mão dada com um homem alto que sorria e de punho erguido. Mandela recebia os flashes da multidão de jornalistas do mundo inteiro. O país dava um passo gigante para a democracia. Mas faltariam ainda quatro anos para que todos os sul-africanos pudessem votar.

Apartheid –  uma democracia de brancos, um bocadinho para indianos e mestiços e zero para negros

A África do Sul é um puzzle de pessoas de muitas cores e religiões. Entre os brancos existem os africânderes e os anglófonos e estes ainda se dividem entre judeus, católicos e protestantes. Entre os não-brancos existem os asiáticos, os indianos, os negros e ainda os mestiços (os chamados "coloured", descendentes de europeus, africanos, malaios, asiáticos etc.). Durante o apartheid, todo o documento ou formulário do Estado tinha um espaço para a classificação da cor. A população não-branca viveu segregada num regime ideológico de "juntos mas à parte" – apartheid. "À parte" era a regra. O regime espalhava placas com as palavras "branco" e "não-branco". Nada escapava, desde os bancos do jardim, aos autocarros, às universidades, aos bairros. O regime insistia em rotular e em classificar ao milímetro. Em 1949, apenas um ano após a vitória do Partido Nacionalista e a instauração do regime apartheid, o parlamento aprovou a lei de "proibição de casamentos de raças diferentes" e logo no ano seguinte publicou a "lei da imoralidade" que contemplava também "relações sexuais entre pessoas de diferentes raças".

Em 1984, quando o país vivia o auge da violência, o Governo resolveu criar mais duas assembleias nacionais, uma para os indianos e outra para os mestiços. Ficava assim um sistema tricamaral, mas onde só a assembleia dos brancos tinha verdadeiros poderes. As outras eram de cariz consultivo, sobretudo para políticas relacionadas com os seus grupos. A democracia parlamentar que era só dos brancos passava a ser também um bocadinho para parte dos não-brancos. Quanto aos negros, continuariam até 1994 com zero de democracia. Quando olhamos para os números demográficos da África do Sul, não podemos deixar de nos impressionar com o facto de que um regime com direitos para apenas 8% da população tenha sobrevivido até quase ao final do seculo XX. 

1994-2016: Três presidentes e um mais-ou-menos "impeachment"

Um professor da Universidade do Cabo resumia-me que a melhor decisão da governação Mandela foi a sua decisão de não-governar. Não era uma crítica ao mandato de Mandela, mas um elogio por não ter sido contagiado pela tentação de "Presidentes para a Vida" em muitos países africanos. O seu único mandato ficou caracterizado pela expressão "nação arco-íris" num dos seus primeiros discursos e resumia a sua política de reconciliação e de um futuro inclusivo para todos independentemente da cor ou religião. 

Depois do Tata (pai da nação) ou Madiba (seu nome na sua língua materna) foi a vez de Thabo Mbeki ser o segundo presidente negro da África do Sul. Mbeki iniciou o mandato com Jacob Zuma como seu número dois, mas esta aliança desapareceu e de parceiros passaram a inimigos.

Em 2007, milhares de militantes do Congresso Nacional Africano (ANC) eleitos a nível local dirigiram-se à cidade de Polokwane para eleger o seu presidente. Não foi preciso a contagem dos votos para se perceber que Zuma seria o vencedor. Na televisão perante todos os sul-africanos, Mbeki, discursou pausadamente indiferente ao ruído crescente dos militantes que dirigiam cânticos contra si. Todo o país assistiu à humilhação do seu Presidente. Meses mais tarde, o partido iria forçar a sua demissão. Num país com um partido com maioria absoluta e com tradição de disciplina, o impeachment seria sempre "caseiro", ou seja, feito pelo e no partido e nunca na arena parlamentar. Como foi o caso em Abril deste ano, quando a oposição tentou remover o Presidente Zuma, mas os 233 votos do ANC bloquearam a vontade dos 143 deputados da oposição.

A sessão parlamentar teve lugar ao conhecer-se a decisão unânime do Tribunal Constitucional deliberando que o Presidente Zuma devia devolver ao Estado uma parte dos 23 milhões de dólares, indevidamente usados para melhorias na segurança da sua casa privada em Nkandla. O processo arrastava-se desde de 2014 quando o gabinete anticorrupção concluiu que as verbas foram gastas numa piscina, um anfiteatro, e espaços para animais. No dia seguinte à decisão do tribunal, Zuma dirigiu-se ao país, pediu desculpa e comprometeu-se a cumprir a deliberação.

Perante a tempestade política, o ANC reuniu a sua estrutura dirigente máxima e o veredicto foi que o partido mantinha a plena confiança no Presidente, mas na mesma declaração alertou que a discussão sobre o envolvimento e aproveitamento da família Gupta foi franca e dura e que não aceitava a captação do Estado ou do partido por qualquer grupo. A família Gupta é uma família indiana que chegou à África do Sul nos anos 90 e à qual a imprensa tem atribuído várias alegações de corrupção e de favorecimento em negócios pela presidência.

Eleições municipais em 2016

As eleições municipais do próximo 3 de agosto realizam-se num momento difícil para o ANC. Para além da crise de imagem, o Governo enfrenta uma crise económica. Para além dos dígitos macroeconómicos, o país sofre a mais grave crise de fornecimento de eletricidade. Esta situação resulta de variados factores entre os quais a expansão de energia a mais agregados, mas cria um sentimento de retrocesso nas classes média e alta. Entre os mais desfavorecidos, o ANC começa a ter dificuldade em manter o voto dos negros "nascidos-pós-apartheid" usando apenas a retórica de libertação. A África do Sul sempre teve um dos mais altos índices de desigualdade e nos últimos anos cresceu.

Os dois maiores partidos da oposição serão também testados. A Aliança Democrática (AD) vai a eleições pela primeira vez sob a liderança de um negro, Mmusi Maimane. E o partido Economic Freedom Fighters (EFP) será testado sobre se o seu terceiro lugar da última eleição foi conseguido apenas à sombra do carismático e polémico Julius Malema. Malema e Maimane só têm em comum serem negros e líderes de partidos de oposição. O leitor não precisa de saber quem é quem, facilmente verá que o liberal Maimane é o jovem de fato e gravata no parlamento e o revolucionário Malema veste fato-macaco vermelho.

A democracia vai cair/fall?

No último ano surgiu uma campanha com o lema "Zumamustfall/Zumadevecair" e logo a seguir alastrou-se aos estudantes universitários que adoptaram "rhodesmustfall", exigindo a retirada dos símbolos do poder branco. As estátuas podem cair, os nomes de ruas, e até presidentes. Mas os fazedores da Constituição de 1996 deixaram vários muros de proteção para a democracia: equilíbrio de poderes entre o parlamento e o executivo, 11 línguas oficiais, uma descentralização efectiva a nível municipal e provincial, três capitais – Pretoria como capital do executivo, Bloemfontein capital judicial e a cidade do Cabo, como capital legislativa.

As democracias não são o melhor regime, mas são o menos mau que já se experimentou. A frase de Churchill é sem dúvida o caso da África do Sul. Estes 22 anos podem não ter sido perfeitos, mas foram sem dúvida melhores do que os anteriores.

Elisabete Azevedo-Harman, politóloga e professora na Universidade Católica de Moçambique

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