“Eu fui desertor. Digo-o com todo o gosto”

Milhares de jovens desertaram durante a guerra colonial. O tema teima em andar em torno “do binómio coragem/cobardia”. “Ainda é preciso explicar.”

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Fernando Cardoso: a ideia que ainda permanece é a de que “fomos uns tipos com falta de coragem, traidores à pátria” DR

Fernando Cardoso lembra-se bem do dia. Foi até um quartel em Lisboa e fez-se anunciar: “Eu sou desertor.” Tinham passado uns dois anos do 25 de Abril de 1974. O militar que o recebeu ficou atrapalhado, sem saber o que fazer, informou o superior. “Meu capitão, está aqui um desertor.” A primeira coisa que o capitão lhe disse foi: “E o armamento? E a farda?” Para os militares, “era como se nós fossemos bichos, pessoas de outra espécie”. “Está aqui a lei”, mostrou-lha.

Decreto-lei n.º 180/74, de 2 de Maio: “Considerando que muitos militares, quer pertencentes aos quadros permanentes, quer no âmbito do serviço militar obrigatório, se ausentaram do país por motivos de natureza ideológica e política, devido ao regime então em vigor; considerando que muitos jovens se ausentaram do país, pelos mesmos motivos, recusando-se a cumprir as disposições da Lei do Serviço Militar; tendo em atenção o desejo manifestado por todos esses portugueses de se integrarem de novo na comunidade nacional, com vista à reconstrução que se inicia, é amnistiado o crime de deserção.”

O diploma perdoava os desertores como Fernando Cardoso, autorizava-os a voltar ao país, sem serem punidos. Mas será que, passados mais de 40 anos, terão mesmo sido absolvidos? Pela sociedade? Pelos militares?

Buraco negro da história

A ideia que ainda permanece é a de que “fomos uns tipos com falta de coragem, traidores à pátria”, nota Fernando Cardoso. Essa é uma das razões porque um grupo de 22 exilados e desertores políticos vêm agora dar a conhecer as suas experiências e motivações em livro. Exílios –Testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974) é lançado no sábado na Biblioteca Sophia Mello Breyner, na cidade algarvia de Loulé, e a 12 de Maio no núcleo de Lisboa da Associação José Afonso.

Através de memórias pessoais, pretendem demonstrar como a deserção política foi, afinal, um acto de coragem. E de como, passado este tempo, podem dizer que têm “orgulho” de ter desertado, em vez de terem ido à guerra, como era obrigatório.

“Eu fui desertor. Digo-o com todo o gosto”, diz Fernando Cardoso, mentor da iniciativa, que preside a uma nova associação que iniciou este ano funções. A Associação de Exilados Políticos Portugueses quer recolher e divulgar memórias do exílio e “apoiar e desenvolver iniciativas pela paz, pelos direitos humanos, contra a guerra”.

Tendo o livro como âncora, a 27 de Outubro vai também realizar-se um colóquio que vai juntar historiadores e investigadores de outras áreas para debater, pela primeira vez, a questão da deserção e do exílio. Exílios e Memória é organizado pelo Instituto de História Contemporânea e o Centro em Rede de Investigação em Antropologia, ambos da Universidade Nova de Lisboa, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (UC), o Centro de Documentação 25 de Abril e a Associação de Exilados Políticos Portugueses.

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Fernando Cardoso nos anos de 1970

“É um buraco negro da história contemporânea. A deserção é um assunto metido debaixo do tapete”, refere Fernando Cardoso, que propôs a organização do evento. “Muitas pessoas que fizeram parte do regime democrático, mesmo os militares de Abril, nunca se libertaram dessas ideias: ‘Nós fomos à guerra, mesmo sendo contra. Eles foram-se embora para uma vida sem risco, sem a perspectiva da morte’”, diz, por sua vez, Rui Bebiano, um dos testemunhos do livro, no duplo papel de desertor e historiador.

Rui Bebiano, que é também director do Centro de Documentação 25 de Abril da UC, diz que “esta é uma oportunidade de explicar os que desertaram por convicção ideológica, não por medo ou por receio”. Nota que muitas deserções políticas foram de antigos militares, a maioria oficiais, o que, na altura, contribuiu para o enfraquecimento da imagem pública do regime.

“Para o cidadão comum, os desertores são aqueles tipos que estiveram na bela vida, numa esplanada de Paris. É uma imagem compreensível”, admite Bebiano. O que o livro pretende trazer a público são testemunhos de pessoas que mostram que “muitos passaram fome, algumas pessoas abandonaram a família, às vezes as namoradas, as mulheres, empregos, amigos, hábitos, não acabaram o curso. Tinham estatuto de classe média, foram cumprir as tarefas mais miseráveis. Não foi uma situação de privilégio. Causou traumas. Há vidas marcadas por isso”. “Ainda é preciso explicar”, defende.

Desertar era para sempre

Hoje, passados 40 anos, Rui Bebiano fala de um sentimento de “orgulho” associado à deserção política, “um momento de coragem”, notando que havia mesmo algumas pessoas que desistiam de desertar no último momento, “que não tiveram a coragem de desertar” e de como isso também “envergonhava”.

“Pensava-se que era para toda a vida.” Rui Bebiano lembra o dia “inesquecível” em que saiu de casa dos pais, pensando “não vou voltar a vê-los”. “Saí da casa dos meus pais com uma mala cheia de livros, o que não é prático para desertar. O peso…”, diz a sorrir. Tinha 21 anos, “alguma ingenuidade.” No seu caso, acabou por vir o 25 de Abril e não chegou a passar a vida de clandestinidade para o outro lado da fronteira.

“Não condenamos quem foi. Era obrigatório”, diz Fernando Cardoso. Mas hoje, à distância, comenta: “Não sei se era mais fácil ir para a guerra ou desertar. Desertar era para sempre, tinha de se deixar a família, os homens que iam à guerra corriam perigo de vida, mas tinham a sua vida normalizada no regresso. A vida de desertor é desnormalizada”, refere.

Não era só a instituição militar que via com maus olhos a deserção antes de ir para a guerra — o próprio PCP defendia a deserção, mas já no teatro de guerra. Entendia que os militantes tinham a tarefa de esclarecer os outros soldados e incitá-los a desertar, explica a historiadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa, Irene Pimentel, no posfácio do livro.

Já “os sectores de esquerda mais radical defendiam a deserção antes da mobilização”. Organizações de extrema-esquerda — os 22 autores pertenceram à Organização Comunista Marxista Leninista Portuguesa (OCMLP), extinta em 1975 — demarcavam-se do PCP também na forma de recusa à guerra: desertaram antes de irem, mas consideravam que o período de recruta lhes poderia ser útil.

Fernando Cardoso fala dos seis meses de recruta num tom cómico, tinha 21 anos. Diz que entendeu aquele período como “formação técnico-profissional de borla, com comida e dormida incluídas". "Interessava-me aprender a manusear armas. Aprendi imensa coisa, a orientar-me à noite pelas estrelas, cartografia, a manusear G3. Muito interessante.” A leitura de mapas, por exemplo, foi-lhe útil para passar a fronteira a salto ali na zona de Marvão; o percurso que se seguiu foi feito numa Renault 4L com problemas de embraiagem.

À chegada a França, onde viveu seis anos, o espanto: “Pessoas abraçadas, pessoas a darem beijos às namoradas, as cores, a naturalidade versus a contenção ‘do parece mal’, ‘o que é que as pessoas vão pensar’.” Teve, como muitos, o seu momento de overdose de liberdade, com sessões contínuas de cinema — entrava às 12h na cinemateca e saía às 24h. Em Portugal, acabou por fazer a sua carreira na área do vídeo e multimédia. “Estava fascinado com as coisas que havia para fazer no mundo.”

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A maior parte dos que rumaram à Europa ficaram em França, na Holanda, na Dinamarca e Suécia, onde mantinham ligações às lutas de libertação de países africanos. No caso da OCMLP, organizaram também comités de desertores. Seis dos autores do livro não voltaram para Portugal.

Manuel Alegre "traiu a pátria"

O historiador do Centro de Estudos Sociais da UC, Miguel Cardina, que está a estudar o tema da deserção, diz que persiste até hoje uma leitura feita “à luz do binómio coragem/cobardia, seja de forma explícita ou nas entrelinhas”. “A ideia da virilidade e da masculinidade” presente “na instituição militar”, ainda numa lógica de “condenação” ou de “justificação”.

Lembra que esta leitura esteve muito presente na campanha presidencial de Manuel Alegre, em 2011. Esse argumento, de que foi desertor, foi esgrimido contra si por algumas pessoas, como forma de o desqualificar como sendo pouco patriótico. “Não podia ser Presidente porque tinha tido medo, tinha traído a pátria”, recorda Rui Bebiano. O histórico socialista chegou a acusar dois bloguers, um deles militar, de difamação por esse motivo.

O tema voltou a assomar com o documentário do realizador Rui Simões, Guerra ou Paz, em 2014, recorda o historiador Miguel Cardina. O filme aborda a questão da deserção, com vários testemunhos, incluindo o do próprio, que viveu exilado na Bélgica. No filme fala “do choque” de estar em Lisboa e ver regressar os seus amigos mais velhos transformados pela guerra: “Contavam cenas de grande violência com grande orgulho. Eram pessoas diferentes.” E ele só pensava: “Como é que eu saio deste filme?”

O historiador nota que a deserção se menciona de passagem nos livros sobre a guerra colonial mas é um tema que permanece por estudar, tanto que se desconhece ao certo quantos serão os que o terão feito por convicções políticas.

No colóquio de 27 de Outubro, o historiador, que está a fazer um trabalho sobre o tema com a investigadora Susana Martins, vai apresentar números mais definitivos sobre a realidade. No Centro de Documentação 25 de Abril da UC está também a conduzir entrevistas a desertores em formato vídeo, para passarem a constar do Arquivo de História Oral da instituição. E o que se nota, apenas por esta pequena amostra, é que há motivações muito diferentes entre quem desertou: às vezes a recusa da disciplina militar, a politização já depois da deserção. O que é importante dizer é que a deserção por motivos políticos foi levada a cabo por uma minoria de pessoas, que fica diluída na imensidão dos que saíram do país para fugir a uma guerra que roubava três anos de vida (um ano de formação e dois no teatro de guerra).

Estima-se que terão sido 200 mil os que emigraram por motivos económicos durante o período do conflito, saídas motivadas pelas más condições de vida, pela falta de perspectivas no país. Mas esses não são considerados desertores, entram na designação de "faltosos" (que já não estão em Portugal quando são chamados para a inspecção), um universo diferente dos “refractários” (os que vão à inspecção e fogem antes da recruta). Chama-se desertores aos que abandonam uma unidade militar já incorporados, o que poderá já ser relacionado com a recusa da guerra por razões políticas, nota o investigador. Não há estudos, mas terão sido milhares — só em 1969 dados oficiais dizem que foram 200, refere Miguel Cardina.

O historiador distingue três trajectos de deserção num fenómeno que é muito diverso: os que foram para países europeus, os que desertaram dos teatros de guerra sensibilizados por movimentos de libertação africanos (indo para países como a Argélia, o Senegal, o Congo) — como aconteceu com Manuel Alegre, que viveu em Argel — e os militares africanos que abandonaram as fileiras no terreno.

O quase silêncio em torno do tema pode estar, em larga medida, ligado “ao facto de o advento da democracia em Portugal ter sido feito pelos militares, o que depois condiciona a forma como é feita a análise da guerra, na dificuldade, por exemplo, de abordar os ‘Wiriamus [massacre em Moçambique levado a cabo por tropas portuguesas] que aconteceram’”, comenta Miguel Cardina.

O mesmo se aplica ao tema da deserção. “Recusar a guerra parece que é estar do lado errado da História. Era preciso ir à guerra e depois fazer uma revolução”, ironiza. “Esta é uma memória fraca, subalterna, que não tem a força de inscrição de outras memórias sobre a guerra.” Talvez seja uma das razões porque demorou tantos anos “a inscrição destas narrativas pessoais, de auto-produção de memórias” dos desertores. O que os desertores políticos querem é também fazer parte da História.

Notícia corrigida às 9h23. O nome do documentário de Rui Simões é Guerra ou Paz e não Guerra e Paz. Por lapso escreveu-se que era em Portugal que os desertores políticos mantinham ligações às lutas de libertação de países africanos, quando tal acontecia nos países europeus para onde fugiam para o exílio, onde eram organizados os comités de desertores.

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