Tout va très bien, Madame la Marquise

Há uma avaliação que revela que o Banco de Portugal aparentemente falhou no caso BES. E agora?

O governador do Banco de Portugal faz lembrar aquela música "Tout va très bien, Madame la Marquise", de Ray Ventura, em que o criado conta à sua marquesa por telefone que tudo está óptimo em casa dela, excepto uma série de catástrofes que vai contando pelo meio. Há um banco que vai à falência, mais tout va bien, há um banqueiro que recebe uma prenda de 14 milhões, tout va très bien, há uma série de coisas esquisitas na OPA do Montepio sobre o Finibanco reveladas na semana passada pelo PÚBLICO, et tout va bien. Os contribuintes já estorricaram milhões e milhões de euros a salvar bancos aparentemente mal supervisionados mas, à part ça, tout va très bien. E para terminar, o relatório que o Banco de Portugal encomendou a uma consultora independente para avaliar o seu próprio trabalho supostamente afirma que o supervisor falhou, mas à parte disso, tout va bien, Monsieur le gouverneur Carlos Costa.

A história é fácil de contar e difícil de acreditar. Estávamos no início de 2015, no auge da Comissão de Inquérito ao caso BES, com o governador cercado por todos os lados. O Banco de Portugal era acusado de ter demorado uma eternidade a retirar a idoneidade a Ricardo Salgado, de ter descurado o risco desproporcionado de Angola nas contas do banco, de saber, desde Novembro de 2013, das falsificações nas contas das empresas do Grupo Espírito Santo e de pouco ou nada ter feito para evitar o contágio ao banco e afastar os responsáveis. Na altura, Carlos Costa, para se defender ou tentar calar as críticas, criou uma comissão e contratou os serviços da consultora Boston Consulting Group (BCG), para avaliar o seu próprio trabalho e tentar perceber o que terá falhado (se é que alguma coisa falhou) na supervisão ao BES.

Até aqui tudo relativamente normal. Tout va bien. A anormalidade começa quando o tempo passa e nenhum sinal do relatório. O tempo continua a passar, e nada. Chegámos ao ponto de o governador ter sido nomeado para um novo mandato sem sequer conhecermos as conclusões do trabalho da BCG. A única coisa que tivemos do Banco de Portugal foi um documento, supostamente baseado na tal auditoria da BCG, em que o Banco de Portugal faz recomendações a si próprio para melhorar a supervisão. É o que numa linguagem técnica pouco burilada se chama virar o bico ao prego. Uma das recomendações refere, por exemplo, que o Banco de Portugal deve “ser particularmente vigilante”. Isso quer dizer que não o foi no passado? Diz que o regulador não deve “tolerar, em nenhum caso, a falta de esclarecimento”. Isto quer dizer que tolerou? Fala na necessidade de “monitorização permanente”. Não o fez no passado? Chama a atenção para a necessidade de alertar os “outros reguladores, CMVM e ASF, no caso de ser detectada qualquer irregularidade”. Também se terá esquecido de o fazer no caso BES? Não sabemos.

Perante um silêncio sepulcral do Banco de Portugal, os deputados começam a inquietar-se e a pedir insistentemente o relatório. Os socialistas indignaram-se e até fizeram uma queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que terá dado razão ao PS. Carlos Costa nunca cedeu e sempre recusou revelar o conteúdo do documento, invocando o “dever de confidencialidade”.

Esta semana, o Jornal de Negócios veio noticiar aquilo de que já todos de certa forma desconfiávamos; que o relatório deixa críticas à actuação do supervisor e aponta falhas no acompanhamento feito ao BES. O relatório, segundo o jornal, “indica que, em pelo menos dois dossiers (Angola e relação entre o BES e o grupo), havia informação que não foi utilizada na actuação do supervisor”. Sei que andamos todos entretidos a discutir a espanholização da banca portuguesa, mas o que se está a passar no Banco de Portugal parece ser de uma gravidade enorme. Passa pela cabeça de alguém que o regulador da banca, que é uma entidade que deve inspirar a máxima confiança aos portugueses, peça um relatório a avaliar o seu próprio trabalho e depois o esconda da opinião pública, do Parlamento e até do Governo que o nomeia e o pode exonerar caso ele tenha cometido uma falha grave? Fará sentido invocar o “dever de confidencialidade” nesta matéria? Nas 600 páginas que dizem ter o relatório, não poderão truncar informação confidencial, se ela realmente existir, e libertar apenas a avaliação feita ao trabalho do Banco de Portugal?

Aqui chegados, já nem sequer sabemos se o mais grave é que o Banco de Portugal esteja a esconder informação ou se é o facto de ter falhado na supervisão. E o pior é que a informação que vai saindo cá para fora sobre o relatório é cobarde e está aparentemente a ser filtrada, tentando passar o ónus de eventuais falhas para figuras secundárias na hierarquia, como Pedro Duarte Neves, que foi o vice-governador responsável pela supervisão prudencial no primeiro mandato de Carlos Costa. O Governo já se deu ao trabalho de, por exemplo, ir perguntar a António Varela, que foi o administrador que ficou com a pasta de Pedro Duarte Neves, a razão por que se demitiu recentemente? A imprensa diz que Varela sai “por discordar dos métodos de gestão e das estratégias de Carlos Costa”. Que métodos são estes? E que estratégia é essa?

Não sabemos se os actuais responsáveis do Banco de Portugal são ou não competentes. Até porque não tivemos acesso à única auditoria que nos poderia elucidar. Mas imaginemos, por um breve momento que seja, que Carlos Costa não é competente para o cargo que ocupa. E que a supervisão falhou redondamente no passado. Alguém já pensou em quantos mil milhões é que isto terá custado ao país? À part ça, tout va très bien.

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