A extinção da classe média em Portugal

Em Portugal como em todos os países europeus, é na existência duma classe média, que se encontra o ponto de equilíbrio decisivo para o funcionamento do Estado Social.

O salazarismo conseguiu a proeza de manter Portugal no século XIX, até pelo menos 1960. A adesão de Portugal à EFTA nos anos 60 do século XX colocou Portugal pela primeira vez "dentro" da Europa, mas em termos estritamente comerciais. Só doze anos depois de 1974, com o fim da guerra em África e com a democracia estabilizada, se conseguiram as condições para a plena integração na então designada Comunidade Económica Europeia.

Trinta anos depois é bom recordar a que Europa queria Portugal aderir ou pensavam os portugueses estar a aderir?

Depois das catástrofes humanas e sociais que constituíram as sucessivas guerras europeias do séc. XX, a reconstrução europeia fez-se a partir de 1950, com base numa nova agenda ideológica, curiosamente comum às duas grandes correntes políticas da parte democrática do continente.

Nessa agenda ideológica do pós-guerra, fosse de matriz social-democrata ou democrata-cristã, o Estado faria sempre um melhor trabalho do que o mercado desregulado. Na distribuição de bens e serviços, no planeamento, na coesão social e na vitalidade cultural, a opção ideológica dominante era no sentido de que estes assuntos já não podiam ser deixados ao dito mercado livre. A intervenção do Estado era então considerada como algo muito bom e havia Estado em quase tudo e em quantidade. Esta política conduziu inevitavelmente a um grande aumento da despesa pública, especialmente na segurança social, pensões, saúde, educação e habitação. Curiosamente, o sucesso do capitalismo europeu do pós-guerra assenta exactamente no papel crescente que o sector público tinha na economia. O Estado apenas se absteve da posse directa da indústria e de parte do sistema financeiro, tendo este último uma importância muito menor que actualmente. Este Estado é, muito resumidamente, o dito Estado social europeu. Foi a "este filme" que Portugal e os portugueses julgaram estar a aderir em 1985. Os governos de Cavaco Silva e António Guterres implementaram, até onde lhes foi possível, o modelo do Estado social europeu em Portugal: transportes públicos, alargamento do passe social, aumento do nível de rendimentos e progressões automáticas no funcionalismo público, rendimento mínimo para os mais carentes, Serviço Nacional de Saúde, segurança no emprego no sector público e lei laboral favorável ao trabalhador no sector privado, pensões generosas (face aos descontos que realmente os beneficiários tinham efectuado), aumento do rendimento disponível das pessoas em todas as actividades, protecção no desemprego, etc. Tudo isto, claro, através dos subsídios europeus a fundo perdido e de um exponencial aumento da despesa do Estado.

Foi durante estes anos que surgiu em Portugal o que se pode designar como a "classe média". No tempo da ditadura não havia classe média, mas apenas ricos e pobres. O que define esta classe média em Portugal? São as pessoas ou as famílias que auferem rendimentos líquidos que lhes permitem, cumulativamente, adquirir casa própria, ter férias fora do local de residência, nalguns casos em segunda casa própria, ter os filhos em escola pública ou privada, conforme acharem mais conveniente, poder usar serviços de saúde pública, porque para isso já pagam impostos, ou usar serviços privados, porque também pagam seguros de saúde, utilizar automóvel próprio, fazer algumas refeições em restaurantes, adquirir alguns bens culturais e ainda possuir seguros de vida, poupanças em planos de reforma ou investimento, e descontar o necessário para ter uma pensão decente. Isto é a classe média. A existência desta classe média, que paga 90% da colecta total de IRS, interessa ao Estado, não só porque recorre menos aos serviços públicos que as pessoas pobres, como também sustenta muitos empregos da chamada "economia informal", que pesa em sentido positivo e muito na taxa de desemprego real (não confundir com "economia paralela", que é outra coisa).

A sobrevivência desta classe média como tal depende do rendimento disponível que o sistema fiscal lhe permite auferir. E este rendimento disponível tem vindo sucessivamente a estreitar-se de um modo que conduz a que muitas destas famílias passem para o grupo dos inteiramente dependentes do Estado. O actual Orçamento vai, perigosamente, neste sentido. Pode discutir-se se tinha outra opção, mas é um facto.

A transformação da União Europeia da associação voluntária de Estados iguais a que aderimos, para uma relação entre credores e devedores, em que quando os devedores não conseguem pagar os credores ditam os termos, veio alterar todo o contexto de equilíbrio na União Europeia. E os devedores — é o nosso caso — têm de descobrir quem de entre os seus mais vai contribuir para o pagamento da dívida.

É sociologicamente consensual que a classe média sabe que nunca será rica, mas de modo algum quer passar a ser pobre, e que as pessoas mais pobres também sabem que nunca serão ricas, mas aspiram a ser classe média. Estes factos constatáveis permitem o funcionamento do chamado "elevador social", que é fundamental para o crescimento económico, a solidariedade entre gerações e a estabilidade do regime democrático. Em Portugal, como em todos os países europeus, é na existência de uma classe média que se encontra o ponto de equilíbrio decisivo para o funcionamento do Estado social.

Mas não é possível cozinhar a galinha dos ovos de ouro e continuar a tê-la.

Jurista

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