Escândalo Tesco: das palavras aos actos... e em Portugal?

As más práticas não serão seguramente um exclusivo da Tesco. Este é um tipo de situações que se repete em múltiplos mercados. E Portugal não é excepção.

No final de 2014 publiquei um artigo dando conta de um mediático escândalo com o retalhista Tesco, no Reino Unido, no âmbito de uma investigação aos contratos e à estratégia agressiva para fechar negócios com os fornecedores desta cadeia de distribuição. Em Agosto daquele ano, a maior cadeia britânica de distribuição, que possui uma quota de mercado a rondar os 30%, havia apresentado uma previsão para os resultados do semestre de 1,37 mil milhões de euros (menos 630 milhões do que em Junho de 2013). Em meados de Setembro essa previsão foi revista, em baixa, para 1,06 mil milhões de euros, levando a uma forte quebra bolsista e à suspensão de responsáveis da empresa durante o processo de investigação.

Em Outubro dizia-se que a perda do valor em Bolsa da Tesco ultrapassava já os 5,4 mil milhões de euros e o então CEO, Philip Clarke, era investigado por práticas comerciais agressivas com os seus fornecedores. 

O Serious Fraud Office britânico abriu uma investigação formal e uma das primeiras decisões adoptadas passou pela obrigação de devolução dos prémios de gestão anteriormente atribuídos. Também a Groceries Code Adjudicator, Cristine Tacon, avançou com a sua própria investigação para apurar se o relacionamento com os fornecedores se adequava ao Groceries Supply Code of Practice, o código legal que regula a actividade das grandes cadeias de distribuição britânicas.

Um ano volvido, a investigação acabou e as conclusões divulgadas há dias são demolidoras para a Tesco.

As práticas abusivas identificadas farão corar os mais desconhecedores destes meandros: atrasos propositados de pagamentos para compor a rentabilidade, exigências de pagamentos para a manutenção de produtos à venda, desconto unilateral de verbas nos pagamentos efetuados sem qualquer acordo ou consentimento dos fornecedores, exigências de verbas aos fornecedores quando os objectivos de rentabilidade da Tesco não eram cumpridos, reclamação de verbas relativas a factos ocorridas anos antes, em resultado de auditorias internas e mais, bastante mais.

As alterações de procedimentos, cuja implementação é exigida no prazo de quatro semanas, são simples e objectivas: as verbas exigidas aos fornecedores devem respeitar estritamente as condições antecipadamente contratualizadas, não podem ser efectuadas deduções unilaterais de verbas, os erros comprovadamente detectados pelos fornecedores deverão ser imediatamente corrigidos, os acordos estabelecidos com os fornecedores devem ser claros e transparentes edevem ser dadas instruções e formação adequada a todos os membros das equipas de compras e financeira para o estrito cumprimento destas alterações. 

No Reino Unido, estas más práticas não serão seguramente um exclusivo da Tesco nem tão-pouco algo que exista apenas no mercado britânico.

Este é um tipo de situações que se repete em múltiplos mercados. E Portugal não é excepção…

Sobre estas matérias não existe legislação harmonizada europeia, mas uma larga maioria dos países europeus possui ou está em vias de possuir legislação específica e adequada.

Portugal possui uma das legislações mais bem construídas a nível europeu, com um espectro de especificações adequado e uma moldura sancionatória com efectivo poder dissuasor.

Na última legislatura, deram-se passos importantes relativamente a este tema, tais como o sentido de urgência na criação de novas soluções legislativas que lhe dessem resposta e o reforço dos meios para a sua implementação. Mas nem tudo ficou feito…

Por exemplo, para um mercado que, grosso modo, vale 16 mil milhões de euros, a autoridade com responsabilidade sobre estes temas – ASAE – possui apenas uma dúzia de inspetores dedicados à fiscalização do cumprimento da legislação. E estamos a falar de matérias de elevada complexidade financeira, contabilística e jurídica. Imaginem que a brigada de trânsito possuía apenas 12 carros para fiscalizar todas a estradas e auto-estradas do país!

De igual forma, o país tem vivido ruidosas crises em sectores concretos de actividade, com graves implicações para a produção e para os produtores nacionais. Veja-se os casos recentes da suinicultura ou do leite. Existirão dúvidas de que parte dos mesmos resulta de incumprimento da legislação das Práticas Individuais Restritivas do Comércio (PIRC)? Então porque não reforçar a sua fiscalização?

A legislação nacional prevê a elaboração de códigos de boas práticas que complementem a legislação, ou seja, a autorregulação que ocupe espaços que a legislação não pode ou não quis ocupar. E sendo a legislação transversal, também a autorregulação o deveria ser e não ficar apenas restringida, por exemplo, ao sector alimentar.

Produtores, transformadores e retalhistas, contudo, não foram ainda capazes de chegar a um acordo. Por exemplo, os representantes da moderna distribuição recusam aceitar propostas que, mesmo numa base voluntária, contribuam para a inexistência de situações como as agora detectadas na Tesco: o desconto unilateral de verbas nos pagamentos efectuados sem qualquer acordo ou consentimento dos fornecedores, a reclamação de verbas relativas a factos ocorridas anos antes, em resultado de auditorias internas ou outras ou a discriminação no acesso às prateleiras dos produtos de marca de fabricante face aos de marca de distribuidor.

Recentemente, em Espanha foi formalizado um Código de Boas Práticas para o sector alimentar e verificou-se que a iniciativa, empenho e pressão do poder político foi fundamental para esse desfecho positivo, com a adesão ao Código das principais entidades da produção primária, da transformação e da comercialização.

É fundamental recuperar a atenção para um sector que possui um enorme peso na economia nacional, colocar os seus problemas e dificuldades na agenda, recordar a forma como os instrumentos jurídicos em vigor, se convenientemente aplicados, os podem ajudar a superar e, finalmente, reforçar o empenho político no seu acompanhamento e construção de soluções.

Director-Geral da Centromarca

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