Luzia, Victoria e Pedro: as histórias de encantar que há na Lapa

A Venerável Irmandade da Nossa Senhora da Lapa organiza visitas guiadas, mediante marcação, à igreja, salas anexas e ao cemitério romântico.

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Quase que não se repara nela. Do lado direito, mais ou menos a meio da nave única da Igreja da Lapa, no Porto, está, sob um dos altares, uma figura de mulher, de vestidos sumptuosos e coberta de jóias. Está deitada de lado, como se tivesse acabado de adormecer, plácida e de pele escurecida. “Não é uma estátua. É o corpo mumificado de Santa Victoria, que foi doado à Lapa por um casal muito abastado”, explica o professor Francisco Ribeiro da Silva, mesário da Venerável Irmandade da Nossa Senhora da Lapa.

Quem entra na Lapa vai, quase de certeza, à procura da lápide que esconde o coração de D. Pedro IV, mas lá dentro e também no exterior há muito mais para descobrir. O corpo de Santa Victoria é apenas uma das curiosidades para as quais lhe podem chamar a atenção, caso pretenda fazer, um destes dias, uma das visitas guiadas que a Irmandade começou a organizar, de forma regular, este ano. A primeira aconteceu ontem, mas não vão faltar oportunidades para participar numa. A deste sábado, por ser a última do mês, era gratuita e não tinha número mínimo de inscritos, situação que se vai repetir no último sábado de cada mês. Mas, nos restantes dias, as visitas só se realizarão se houver um número mínimo de dez inscritos e mediante o pagamento de cinco euros por pessoa (é grátis para escolas).

A historiadora de arte Eva Mesquita Cordeiro deverá então guiar os visitantes pelo Salão Nobre, onde ainda se realizam as reuniões da Irmandade, a Sala dos Retratos, a igreja e o cemitério romântico, o primeiro a abrir portas no país.

Nós antecipamos o passeio na companhia de Francisco Ribeiro da Silva, que vai explicando que as visitas futuras “não têm um roteiro fechado”. O objectivo, garante, é tentar responder aos anseios do grupo que comparecer na Lapa. Há coisas que quer mesmo mostrar. Como a fotografia da capela inicial da Nossa Senhora da Lapa, onde funcionou a escola, que hoje já não existe, e por onde passaram os escritores Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão ou o médico Ricardo Jorge. E, atrás de uma das portas do salão, que dá para um hall de acesso ao exterior e a umas escadas que levam, lá em cima, à última morada da escola (encerrada há alguns anos por falta de condições), quer também mostrar o sinal de madeira em que se lê ainda, perfeitamente preservada, a inscrição “Collégio da Real Irmandade da Nossa Senhora da Lapa”.

De regresso à longa mesa do salão, o historiador da Lapa, aponta o grande quadro do fundador da irmandade, o padre Ângelo Sequeira, chegado do Brasil em 1754. A pintura, aponta, tem uma curiosidade. É que ali ao lado da imagem do padre, numa espécie de pergaminho que parece desenrolar-se em direcção ao chão, está claramente identificada a fachada da igreja, com as suas duas torres. Só que o quadro é de 1761 e as torres só foram construídas quase um século depois. “Esta parte foi acrescentada mais tarde, quando o quadro foi restaurado, no século XIX”, explica Ribeiro da Silva, desvendando o mistério.

No Salão Nobre está também a imagem de uma das figuras mais cativantes da história da Irmandade – peça à guia que lhe conte a história de Luzia Joaquina Bruce (ela provavelmente fá-lo-á, mesmo que não lhe peça). Imagine uma brasileira, negra, que no Porto burguês do século XIX se apaixona e se torna companheira de João António de Lima (mas sem se casarem) e, ainda assim, graças às generosas doações, se torna uma das principais benfeitoras da Irmandade. É graças a ela que hoje existe o Hospital da Lapa, em frente à igreja e, por enquanto, fora do âmbito da visita.

Luzia teve “uma relação conflituosa” com a Irmandade, explica Francisco Ribeiro da Silva, mas as duas estão intimamente ligadas, de tal modo, que os irmãos da Lapa estão a tentar que o seu corpo, sepultado em Lisboa, regresse ao Porto, e ocupe, finalmente, o lugar que a mulher, conhecida como a baronesa da Lapa mandou construir para o efeito.

E, daqui, podemos deixar o salão, atravessar a igreja e entrar no cemitério. Assim que chega ao espaço apinhado de jazigos e campas corte à direita e procure o mausoléu delicado, de mármore branco, com espaço para receber dois corpos, mas que apenas guarda um. “À memória de João António Lima”, lê-se na estrutura, e é ele que ali está sepultado, à espera de Luzia. Francisco Ribeiro da Silva diz que, depois da morte do amado, Luzia teve um grave problema de saúde, um cancro que lhe afectou a face, deixando-a muito deformada. Terá sido por isso que não terá querido regressar ao Porto.

E quase que o passeio podia terminar aqui. Mas ali, no cemitério, estão Camilo Castelo Branco, está o mercador Ferreira Borges, o Coronel Pacheco, o pai de Ramalho Ortigão… No cemitério, com as suas belas esculturas, podem perder-se horas e qualquer visitante dar-se-ia já por satisfeito com o conjunto de histórias que levaria para casa. Mas ao coração de D. Pedro IV vieram, quase de certeza, muitos deles, e ainda nem sequer o vimos.

Voltamos, por isso, à igreja. Podemos entrar por uma porta lateral e determo-nos na Sala dos Retratos, onde estão, cuidadosamente arranjados, alguns dos principais benfeitores da Irmandade. É provável que, ali ao lado, no acesso à igreja, lhe chamem a atenção para o quadro de S. Sebastião, pintado por Joaquim Rafael, e que se sinta atraída pela figura em tamanho natural de um Cristo, de vestes púrpuras, que parece olhá-lo nos olhos.

Deixe-se guiar pela igreja. O coração de D. Pedro IV está ali, perto do altar, à esquerda, por trás daquela placa negra, em bronze, que cobre a porta de madeira. Por trás da porta, desfia o professor, há uma grade de ferro, e atrás desta, um caixão de mogno, e lá dentro um estojo e, no estojo, um recipiente em vidro e prata dourada, onde está mergulhado, num líquido de conservação o coração que o rei ofereceu à cidade. “E será mesmo dele, o coração? Eu acho que sim”, diz Ribeiro da Silva, explicando que nos arquivos da Irmandade estão guardados os documentos que descrevem, com precisão, todo o processo de transporte do órgão até ao Porto. Além disso, no Salão Nobre, está o cofre de madeira, revestido de veludo, que transportou originalmente o coração real.

Procure tudo isto, procure muito mais. Com tantas histórias, a Lapa há-de ter uma à medida de cada visitante. Ouça o que lhe contam e abra os olhos. Procure Luzia, Victoria e Pedro. A Lapa nunca mais lhe parecerá a mesma.

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