O chevalier Tony Carreira

Nem tudo no gosto é puramente arbitrário e há violências simbólicas que fazem maravilhas pela civilização.

Hoje gostaria de falar de Tony Carreira e Pierre Bourdieu. Não é todos os dias que temos oportunidade de cruzar o autor de Sonhos de Menino com o autor de A Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino, e essa oportunidade não deve ser desperdiçada. Recordo a história aos mais distraídos. O Estado francês atribuiu a Tony Carreira a espectacular medalha de Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres. Tony Carreira pediu para receber a condecoração na embaixada portuguesa. O embaixador recusou. Tony Carreira queixou-se dessa atitude no Facebook. Tal provocou grande comoção nos seus fãs, várias notícias em jornais respeitáveis e a profunda indignação de Marques Mendes no seu comentário de domingo. O cantor suspirou ao DN: “No meu país, hão-de valorizar-me quando tiver um pé para a cova.”

É certo que o embaixador justificou a recusa com o argumento de que “não se atribui a condecoração de um país na embaixada de outro país”, mas seria lastimável reduzir tão rico acontecimento a um mero incidente diplomático entre um cançonetista popular chamado Tony e um embaixador português em Paris chamado Moraes Cabral, sobretudo quando temos diante de nós a possibilidade de uma belíssima análise marxista deste conflito. Num tempo ideologicamente revitaminado, há que saber detectar uma boa luta de classes quando ela aparece, e aquilo que está em causa é obviamente um confronto entre uma classe dominante (representada pelo embaixador Moraes Cabral) e uma classe dominada (os muitos milhares de portugueses que enchem o Pavilhão Atlântico para entoar “Ai destino, ai destino”), lutando pelo inestimável capital simbólico que representa a consagração oficial de Tony Carreira e do gosto musical de todos aqueles que apreciam as suas canções.

É nesse sentido que o protesto dorido de Tony Carreira está muito em linha com Pierre Bourdieu, ao empenhar todos os esforços no combate por um capital cultural que lhe foi sonegado pelo embaixador Moraes Cabral e, já agora, pelo Estado português, que nunca até hoje reconheceu o seu mérito artístico, nem com a mais pequena comenda disponível nos arrumos de Belém. Consciente daquilo a que Bourdieu chamou “arbitrário cultural dominante”, Tony Carreira, homem de esquerda na busca justa pela igualdade, recusa que uma cultura se imponha sobre a outra, ou que alguém lhe diga que o pior fado de Amália é melhor do que a sua mais conseguida canção – não é melhor, é apenas diferente, pensará Tony na esteira de Bourdieu, até porque ambos são Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres.

Como bem explica o sociólogo francês na sua análise sobre o sistema escolar, a cultura dominante é imposta e acaba por excluir os mais pobres em detrimento dos mais ricos, não porque os alunos mais desfavorecidos não tenham cultura, mas simplesmente porque não têm a cultura que a escola exige – o que é uma forma consentida de violência simbólica. Ora, é contra esta violência simbólica que Tony Carreira se insurge, e em vez de gritar “o meu reino por um cavalo”, grita “o meu chevalier por um reino”, que é o reino do artista português reconhecido e consagrado, a que ele tanto ambiciona. Ora, esta é uma boa ilustração do problema que eu tenho com a igualdade: da mesma forma que não confundo Camões com António Aleixo, não quero Tony Carreira confundido com Amália. Nem tudo no gosto é puramente arbitrário e há violências simbólicas que fazem maravilhas pela civilização.

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