De vez em quando é útil ouvir filósofos

“A lógica da moda invadiu a lógica política. A palavra futuro evoca-nos algo de imediato — o que demora a caducar o iPhone, um ano e meio ou menos. Hoje, o futuro é 2016”

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O ano político europeu de 2015 começou em Janeiro na Grécia, com a vitória do Syriza, e culminou em Dezembro em Espanha com a implosão do bipartidarismo, passando por outros momentos críticos, como a itória de Marine Le Pen nas eleições regionais francesas ou o regresso da Polónia a um regime nacionalista com traços autoritários. Parece evidente a tendência de fragmentação dos sistemas partidários e a permanência das “vagas populistas”, de direita e esquerda, que vieram para ficar e se manifestarão ao longo de 2016.

“Na Europa parece esgotado o modelo político tradicional”, escreve o politólogo italiano Angelo Panebianco. “O sucesso das novas forças políticas (que os partidos tradicionais rotulam de populistas) assinala que o século XX está verdadeiramente acabado. Em todo o Continente a fragmentação é doravante a regra.

As velhas ideologias estão mortas, o que penaliza os partidos que, no século anterior, se fizeram seus intérpretes.” O terramoto que está a sacudir os governos nacionais da UE arrisca-se a ser um “sismo sistémico”, sublinha Andrea Bonnani, enviado a Espanha do Corriere della Sera. Os eleitores votam “contra” os partidos que tradicionalmente os representavam mas sem mudarem substancialmente de opinião. “As categorias da política tornam-se então ilegíveis e a democracia ingovernável.”

Se os eleitores têm a sensação de que o seu voto não determina as políticas, usam o boletim de voto “para exprimir a frustração contra uma classe política que finge dirigir mas já não dirige nada. Ou voltam a sua raiva contra a Europa.”

A Itália no olho do ciclone
A Espanha está paralisada perante o espectro de os partidos não conseguirem formar um governo. O principal nó está na implacável disputa da hegemonia da esquerda entre o PSOE e o Podemos. Se o quadro permanecer bloqueado, pode acabar numa decepção para a esquerda e para a maioria dos emergentes. Eleições antecipadas podem ajudar Mariano Rajoy a recuperar “votos da estabilidade”.

Em França, a vitória de Le Pen continua a provocar ondas de choque, acentuadas pela crise dos refugiados e pelo terrorismo. O sistema eleitoral francês funciona como um “muro” contra uma vitória da Frente Nacional. O que não pode impedir é que Marine Le Pen passe à segunda volta das presidenciais. O “terceiro eliminado”, que hoje seria o PS, correria o risco de morrer.

Deixando de lado os países do Norte, a Itália poderá vir a estar no olho do ciclone. Tem conhecido uma relativa estabilidade com o governo de Matteo Renzi. O triunfo nas europeias de 2014 acentuou a divisão das direitas e marginalizou o Movimento 5 Estrelas (M5S), de Beppe Grillo. Mas o M5S retomou a trajectória ascendente e constitui hoje a principal ameaça a Renzi e ao Partido Democrático (PD).

Na Primavera, há eleições municipais. Grillo e o seu mentor, Gianroberto Casaleggio, querem conquistar o município de Roma e têm vantagem nas sondagens. Prometem governar a capital através de referendos na Internet. A nível nacional, as sondagens dão-lhe 29%, contra 32 do PD.

Em Outubro, há o referendo das reformas. À cautela, Renzi desvalorizou as eleições locais para jogar tudo no referendo. Tem um argumento forte: se perdesse, a Itália entraria numa crise política pior do que a que levou à demissão de Berlusconi e à nomeação do governo Monti, em 2011, e com efeitos económicos catastróficos. As legislativas estão ainda longe. Mas mesmo a nova lei eleitoral, que impõe uma segunda volta para atribuir o “prémio de maioria” que garante a estabilidade, deixou de ser uma garantia absoluta contra o grillismo. Uma convergência entre o M5S e a extrema-direita de Matteo Salvini ou parte do eleitorado berlusconiano poderia derrotar o PD e Renzi.

A indignação
A mudança de ano incentiva a “refrescar” algumas ideias correntes sobre as crises da democracia. Um filósofo político espanhol, Daniel Innerarity, publicou em Setembro um ensaio intitulado La política en tiempos de indignación (Galaxia Gutenberg), que define como “a política explicada aos idiotas” — no sentido grego do termo, os que recusam participar nos assuntos públicos. É uma apologia da política.

A “indignação” dá tudo como perdido através de lugares comuns como “o nosso maior problema é a classe política; acabaram-se os partidos; que se demitam todos”. Explicou numa entrevista: “Esta poderosa vaga de indignação fez tremer muitas instituições, desencadeou grandes paixões políticas, mas também gerou um especial desconcerto. Acontece que os tempos de indignação são também tempos de confusão.” Particularmente a respeito da política e dos partidos: “Mais do que partidos e sindicatos envelhecidos, preocupa-me a superstição de que um mundo sem eles seria mais justo. (...) Os partidos têm muito a dizer quanto à clarificação das opções e como lugar de formação e participação. E também, evidentemente, no controlo dos eleitos. Outra coisa é saber se o estão a fazer muito mal (...) Há algo pior do que maus partidos? Sim, um mundo sem partidos.”

A moda e a estratégia
Innerarity toma a precaução de sublinhar a velocidade a que tudo muda e caduca. A política sempre foi incerteza. Hoje é-o de outra forma. “Há muito pouco tempo no presente porque as coisas logo se tornam obsoletas. A lógica da moda invadiu a lógica política e o que temos são produtos de estação. Por isso, também os tempos da decepção política se aceleraram dramaticamente. (...) Se pergunto ao meu avô ‘Que te evoca a palavra futuro?’, ele dirá que é uma coisa afastada no tempo. Que se passa hoje em dia? A palavra futuro evoca-nos algo de imediato, o que demora a caducar o iPhone, um ano e meio mais ao menos. O futuro é 2016.”

A moeda tem um reverso: “A lógica da moda envelhece as coisas que eram novas e repõe o envelhecido.” Os partidos emergentes, “cujo principal valor é a virgindade política”, começam a “reeditar velhas misérias”.

Para lá da fragmentação, do dilema entre representação e governabilidade — hoje patente em Espanha —, Innerarity faz uma outra e decisiva interrogação: “Que racionalidade estratégica podem ter as instituições, os partidos, os sindicatos quando o mundo se tornou tão imprevisível? O grande desafio da política é desenvolver uma racionalidade estratégica que não seja dogmática, que não entre em choque com a evolução de uma sociedade em acelerada velocidade.”

Há poderes não democráticos interessados em tornar a política irrelevante. É o pior dos riscos. “Tenho a impressão de que não acertamos na terapia porque nos equivocamos no diagnóstico. (...) A origem dos nossos males não estará no poder da política mas na sua debilidade”.

A chave do problema é a má política, a do curto prazo, para mais submetida “às veleidades da opinião pública”. “Vivemos tempos de desorientação e por isso damos mais atenção à corrupção do que à má política.” Contesta uma ideia geral sobre a origem da crise da democracia. “Não é o distanciamento das elites em relação ao povo que empobreceu as nossas democracias, mas antes, por assim dizer, a sua excessiva proximidade, a debilidade da política vulnerável às pressões de cada momento e apenas atenta às oscilações do curto prazo”.     

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