“A Espanha regenerou-se politicamente sem uma mudança formal”

Fernando Vallespín analisa o mapa político espanhol e os seus protagonistas. Considera essencial uma cultura de pactos que permita uma reforma constitucional para resolver a questão catalã e admite que a próxima será uma legislatura breve.

Foto

Foi uma consequência, inesperada, da crise económica e dos ajustamentos que surpreendeu os analistas. Empurrada pela pressão dos movimentos sociais inorgânicos que durante anos tiveram a sua sede nas praças e ruas, a sociedade espanhola torneou o imobilismo dos políticos e reinventou-se. O que se joga nas eleições legislativas de hoje é a tradução política desta mudança, a sua profundidade e consolidação. Porque, paradoxalmente, o embate entre o novo e o velho, à luz das experiências europeias recentes – o quebrar das aspirações gregas por Bruxelas – pode reafirmar o pragmatismo do possível. E, assim, limitar o alcance da mudança.

“Em Espanha produziu-se um processo de mudança espontânea da sociedade que afecta a visão da política mas não coincide com a mudança política do ponto de vista formal”, afirma, ao PÚBLICO, Fernando Vallespín. Catedrático de Ciência Política da Universidade Autónoma de Madrid, professor convidado em Harvard e Heiderberg, Vallespín foi, entre 2004 e 2008, presidente do oficial Centro de Investigação Sociológica. “Pode-se dizer que, de algum modo, a Espanha se regenerou politicamente sem que tenha havido uma mudança política formal, tanto mais que nestes anos esteve a governar com maioria absoluta o Partido Popular (PP)”, enuncia. E os conservadores apostaram no imobilismo na sua legislatura.

Este fenómeno é acompanhado pela consolidação de um espaço público de debate, à margem dos canais e fóruns tradicionais da política, dos seus códigos e rituais parlamentares. O movimento 15M – que desceu à rua em Maio de 2011 -, apoiado na tecnopolítica, nas tertúlias televisivas e no crowfunding – consolidou-se na proclamação populista contra a classe política que denominou depreciativamente de casta. “Os protagonistas do 15 M diziam [dos políticos] que não os representavam, que não havia democracia, agora, de repente, todos têm algum partido e se sentem representados, apareceram novas formações como Podemos e Cidadãos e as chamadas marés populares na Galiza, Catalunha e Valência”, refere o catedrático. O panorama mudou. O protesto estruturou-se em siglas, o que é prova de normalidade integradora.

“Efectivamente, a sociedade espanhola é muito mais dinâmica do que pensávamos, a sociedade civil é mais dinâmica que os partidos ou o sistema político que tínhamos”, observa. Uma constatação, comum, aliás, a outros domínios da actividade. “Isso também se verificou na economia, de repente a Espanha acordou como país exportador, foi uma surpresa, e à frente da Itália e França em termos de PIB por exportação”, prossegue. “Foram sectores que se reinventaram durante a crise sem mudança política formal”, insiste. Na ausência de orientações, ditou a necessidade.

Foi uma alteração com consequências. “Traduziu-se numa sociedade mais plural que não se deixa agarrar exclusivamente pelas ofertas dos dois grandes partidos [PP e os socialistas do PSOE], que se ampliou a uma oferta mais ampla e que se considera mais atraente”, explicita. Uma mudança de fora para dentro, ao arrepio da vontade das tradicionais máquinas partidárias, na qual os argumentos éticos foram decisivos. “Isso é muito visível na maneira de encarar a corrupção, antes eram tolerados os escândalos dos membros dos partidos com os quais se simpatizava, agora estamos noutro patamar de exigência”, afirma Fernando Vallespín.

No debate da passada segunda-feira entre o chefe do Governo Mariano Rajoy e o líder socialista Pedro Sánchez, a corrupção foi munição quase exclusiva da artilharia do PSOE. Os múltiplos escândalos financeiros que afectaram a nomenclatura dos conservadores, a começar pelos do seu tesoureiro de anos, Luís Bárcenas, sem que o partido tivesse reacção pronta foram o argumento. Uma barragem de fogo tão intensa que não permitiu falar do outro lado da moeda, os casos que afectaram socialistas. “É certo que o PSOE com a nova liderança teve uma atitude mais radical contra a corrupção nas suas próprias fileiras ao não incluir nenhum suspeito de corrupção nas listas eleitorais”, recorda o catedrático.

Pelo caminho ficaram dirigentes de décadas, homens da primeira hora, dos anos 70 do século passado, do denominado clã da tortilla – fotografia tirada num piquenique em Pubelo del Rio em 1974 que assinala a refundação do PSOE - com biografia de ministros e de poderosos chefes de governos autonómicos. “Manuel Chávez, antigo presidente da Andaluzia, já está fora da política”, exemplifica.

Legislatura breve sem reformas
“Houve um rejuvenescimento da política espanhola, à excepção do PP que apenas colocou gente mais jovem para os debates, um rejuvenescimento de atitudes e o aparecimento de novas siglas, como Cidadãos e Podemos”, enumera. Vallespín aponta outros palcos desta renovação. “Nos municípios, nas comunidades autónomas, há novos responsáveis de ideologia mais à esquerda que o PSOE, eleitos por sectores que nunca pensámos que tivessem tal possibilidade que estão a funcionar no sistema político mas falta o teste das legislativas”, aponta.

Esta integração augura, na composição das Cortes que saia das eleições deste domingo, uma maior fragmentação. “É um dado da realidade da política europeia, os cidadãos não querem outorgar todo o poder a um só partido, a desconfiança face à política leva à diversificação do voto, a mais volatilidade”, considera. “Os cidadãos querem sistemas multipartidários, alternativas mais amplas, o que conduz a uma cultura de pacto”, sintetiza. Parece enterrado o bipartidarismo de mais de 40 anos da política espanhola.    

“O que os eleitores querem é que os políticos se entendam, que haja predisposição ao pacto, os partidos emergentes [Cidadãos e Podemos] teriam mais força e um outro papel”, antevê. “O eleitorado espanhol não gosta de mudanças sem rede, no entanto houve alterações espectaculares nas eleições locais e autonómicas, mas nas legislativas, depois da experiência da Grécia com o Syriza, os eleitores serão necessariamente cautos”, alerta. Pelo que o especialista não traça um caminho linear. “Para esta segunda transição seria necessário mais tempo, temos de esperar pelas eleições e ver como se comportam os protagonistas políticos”, admite.

O futuro pós-eleitoral que desenha passa por duas dimensões: a governabilidade e a reforma constitucional. “Cidadãos vai estar muito pressionado para pactuar com o PP, não creio que seja um pacto para governar mas para permitir a investidura”, refere. “Outra alternativa seria Cidadãos com o PSOE e os partidos pequenos, como os nacionalistas bascos ou formações regionais, mas os socialistas teriam um apoio parlamentar muito instável”, considera. Ambas são soluções de mínimos para permitirem a governabilidade.

“De qualquer dos modos, a próxima será uma legislatura breve, de ano e meio, pois a cultura de pacto implica uma reforma constitucional, que é a única forma de resolver a questão catalã”, pondera. “É uma questão que está em stand-by, pode-se resolver por uma reforma constitucional pois não acredito que haja uma maioria sociológica na Catalunha para a independência, se for oferecida uma terceira via entre o actual estatuto ou separar-se de Espanha”, insiste.

“A reforma fundamental é a territorial, numa via federal, de um federalismo assimétrico, com a Catalunha a passar a ter um estatuto senão igual pelo menos semelhante ao do País Basco, mas uma reforma constitucional implica entrar em pactos, que hoje não temos capacidade de vislumbrar”, continua. Daí o prognóstico: “será a inviabilidade da reforma constitucional que levará a eleições antecipadas”.

E a eventualidade de um paradoxo: o regresso à fórmula política das últimas quatro décadas. “Não sei até que ponto uma legislatura breve, com pouca comunicação e capacidade de coordenação entre os novos e velhos partidos, não dará lugar novamente aos velhos”, refere.

Dois eixos nos partidos
Seria um travão a uma renovação iniciada de forma simbólica pela abdicação há ano e meio do Rei Juan Carlos a favor do então Príncipe Felipe. “Em Espanha a monarquia está ausente do debate político, mas simbolicamente esse momento foi muito importante”, opina Fernando Vallespín. “Foi um passo em frente em relação ao regime da transição, pois Juan Carlos representou o percurso do franquismo para a democracia”, opina. “No âmbito do simbólico, e o simbolismo político é decisivo, a abdicação do antigo Rei abriu um período diferente, como prova o rejuvenescimento da figura do Chefe de Estado”, sustenta.

Qual a posição dos partidos neste novo tempo? “Em Espanha cruzam-se dois eixos, o tradicional direita/esquerda com o seu desdobramento de rural/urbano e o recente velho/novo, Cidadão e Podemos estão no eixo novo mas em campos ideológicos diferentes”, desenha.

Pelo caminho, parece afastado, de momento, o papel dos nacionalistas bascos e catalães que foi decisivo nos governos minoritários de Felipe González e José Maria Aznar. Contudo, o balanço dos actuais protagonistas é desigual.

“Podemos é forte nos círculos eleitorais urbanos onde há muito voto jovem (18 aos 30 anos) e universitário, o seu crescimento reside nas províncias com mais população, a sua ambição é converter o PSOE num Pasok, embora não creio que o consigam nestas eleições”, observa. “O problema de Podemos é que não sabemos muito bem o que propõe, aliás mudaram o seu discurso, têm agora um discurso mais amplo e mais realista, falham se apostam, apenas, num partido de esquerda, a sua ambição é a área do centro-esquerda, tradicionalmente a dos socialistas”, refere o catedrático.

“Cidadãos é claramente um partido de gestão tecnocrática, pragmático, com uma liderança jovem que se expressa bem e resulta eficaz nos meios de comunicação, que gera expectativas nos jovens (35 a 45) que são do centro, expectativas de um Governo pouco ideológico e que procura encontrar soluções práticas”, prossegue.

Quanto aos partidos tradicionais, são mais os problemas que as novidades. “O PP é o voto conservador de sempre, de gente de mais de 60 anos, de meios rurais à excepção de Madrid e Valência”, define. Os conservadores estão desde 2011 no poder do país de maior precaridade da Europa, falta-lhe renovação, mas tem um sólido chão eleitoral. “O PSOE já se renovou, porventura não tem a liderança idónea, tem uma alternativa em Susana Diez [presidente da Andaluzia] que é mais populista, mantém os fortins eleitorais andaluz e da Extremadura, mas tem sérios problemas para reconquistar os antigos votantes”, descreve. “Há uma clientela eleitoral potencial que não se fia nos socialistas para resolver os problemas de coesão social e de aumento da desigualdade provocados pela crise”, salienta. Boa parte destas questões nasceram, aliás, sob o seu comando com o Governo de José Luís Rodriguez Zapatero, que foi uma oportunidade perdida para reformas urgentes.

No mapa político, em outro patamar, está a Esquerda Unida, dos comunistas. “É o voto passional da esquerda, com proclamações demagógicas para os seus convencidos, mas os eleitores hoje sabem que as políticas não dependem da vontade nacional, como demonstrou o caso grego”, analisa. “Não se podem ter políticas de esquerda que, pelo seu mero anúncio, fazem subir em 15 pontos as taxas de juro da dívida pública o que, num país tão endividado como a Espanha, significaria um aumento de custos da dívida insuportável”, sintetiza. “Esta dependência, aliás, terminou com o populismo e Podemos já o compreendeu”, concluiu. 

Sugerir correcção
Ler 1 comentários