O eclipse de Marx e a viragem do proletariado à extrema-direita

Os partidos políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do proletariado e das populações oriundas de outras culturas.

1. Parece implausível. O proletariado não suporta ideologias e partidos de extrema-direita. São a antítese da consciência de classe, no sentido marxista do termo, dos problemas de quem vive de um parco ou miserável salário. Mas a história das ideias políticas contém muitas surpresas. Mussolini foi director do Avanti!, o jornal do Partido Socialista e marxista italiano, entre 1912-1914. Após a I Guerra Mundial, metamorfoseou-se como fundador e líder do Partido Nacional Fascista. O pensamento de Nietzsche teve grandes admiradores em Mussolini e no círculo dirigente nazi. A partir dos anos 1960, passou a ser apreciado pela esquerda intelectual e política francesa. Carl Schmitt, “o jurista da corte do Terceiro Reich”, foi objecto de apropriação por parte da esquerda radical, especialmente a italiana, nos anos 1970, na sua contestação à democracia liberal-parlamentar. A moderna ideia de nação — a qual surgiu ligada à esquerda política, com a Revolução Francesa de 1789 — foi, a pouco e pouco, deslocando-se. Há uma apropriação pela direita, ou extrema-direita, desta. Hoje, a esquerda sente-se incomodada com a referência à nação e as manifestações de nacionalismo. Prefere ideias europeístas, multiculturais ou universalistas, especialmente os direitos humanos. As metamorfoses de ideias políticas são surpreendentes, mas não invulgares. Podemos estar a assistir a um processo político similar com as ideologias que suportavam a classe trabalhadora / proletariado. Os seus problemas económicos e sociais, os seus valores culturais, estão a ser apropriados pela extrema-direita e direita populista. A esquerda contemporânea, especialmente a de governo, sente-se desconfortável com o proletariado. Este é — sempre foi, mesmo quando votava em massa nos partidos trabalhistas ou comunistas —, cultural e moralmente conservador. Nas prioridades da agenda política de esquerda estão causas como as minorias, a igualdade de género, a liberdade de orientação sexual e o ambiente. Abandonou, continua a afastar-se do que era, não há muito tempo atrás, o seu principal eleitorado.

2. Tudo indica que o atentado terrorista de 13/N e a crise dos refugiados impulsionaram eleitoralmente a Frente Nacional (FN). Na primeira volta das eleições regionais francesas, efectuada a 6/12/2015, obteve cerca de 28% dos sufrágios a nível nacional. Foi a força política mais votada em seis das treze regiões francesas. A taxa de abstenção foi elevada: próxima dos 50%. Uma questão vem à mente: quem são as camadas da população que votam na FN? Não há ainda estudos sobre esta eleição, mas há estudos sobre actos eleitorais anteriores os quais permitem aferir esse perfil. Vale a pena olhar para os mesmos e ver a realidade que espelham. Em 2014, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, 43% dos operários terão votado na FN de Marine Le Pen. Apenas 8% o fizeram na Frente de Esquerda de Jean-Luc Mélenchon, a coligação onde se enquadra o partido comunista francês. (Ver Le Monde “Le FN obtient ses meilleurs scores chez les jeunes et les ouvriers”, 25/05/2014). Que pensar do voto desses operários — o núcleo histórico e simbólico do proletariado —, num partido de extrema-direita, ou direita populista? Uma possível (e controversa) interpretação é dada por Christophe Guilluy, autor do livro “La France périphérique: Comment on a sacrifié les classes populaires” / A França Periférica: como foram sacrificadas as classes populares (Flammarion, 2014). Guilluy traça um perfil desse votante e das suas motivações. Segundo sustenta, é redutor ver esse voto apenas sob o prisma do racismo, xenofobia ou islamofobia. Entre o eleitorado da FN existem esses problemas e devem ser confrontados. Sugere, no entanto, uma explicação mais complexa. Problemas económicos e sociais profundos — sobretudo nas regiões Norte e Leste — e culturais indentitários —, especialmente nas regiões do Sul. Os votantes encontram-se nos “territórios periféricos da França, com baluartes que são sempre o Norte, o Leste, o Mediterrâneo. Quando olhamos melhor para as regiões e departamentos vemos que a lógica é exactamente a mesma em todas as situações”. Tipicamente nas “zonas económicas menos activas, que criam menos empregos. Estes são os territórios mais distantes das grandes metrópoles, das grandes cidades dinâmicas”. Christophe Guilluy conclui que “há uma verdadeira lógica, sociológica e política” nesse voto, o qual, em grande parte, é um voto de trabalhadores / operários e de protesto: “não é por acaso que a votação na FN se tornou um voto de classe, aliás com uma sociologia de esquerda…" (Ver entrevista na revista Slate, ‘Le vote FN est devenu un vote de classe’, 26/03/2015). Nas eleições regionais de 6/12/2015, Marine Le Pen teve mais de 40% dos sufrágios na antiga região industrial do Norte-Pas-de-Calais-Picardia, hoje em declínio. Está também aí o campo de refugiados / migrantes de Calais, junto à entrada do eurotúnel. Esta votação parece dar plausibilidade à explicação. Ironicamente, num terreno sociológico que Marx via como seu.

3. “O movimento proletário é o movimento autónomo da maioria imensa, no interesse da maioria imensa.” […] O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora [...] coloca, no lugar do isolamento dos operários pela concorrência, a sua união revolucionária pela associação. […] produz, antes do mais, o seu próprio coveiro. O seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.” Estas antevisões do futuro — ver “Manifesto do Partido Comunista” de Karl Marx e Friedrich Engels de 1848 (trad. port. Edições “Avante!”, 1997) —, estão desfasadas da realidade do final do século XX e inícios do século XXI. Conforme já referido, parte importante do debate político passou da economia política — como era nos tempos de Marx, e foi até aos anos 1980 —, para as minorias, a igualdade de género, a liberdade de orientação sexual, o ambiente as migrações e o multiculturalismo. Isto com grande vantagem para o (neo)liberalismo. O abandono do terreno pela esquerda deixou-o hegemónico na economia política. Esta mutação é mal percebida em Portugal. A nossa realidade sociológica — pelo menos até agora foi assim —, mostra uma das sociedades culturalmente mais homogéneas da Europa. Com provável relação com este facto, subsiste um partido comunista com importante peso eleitoral. Retém, ainda, a grande maioria do voto do proletariado. Na União Europeia, o mesmo só ocorre em Chipre. Não por acaso, também aí existe uma grande homogeneidade cultural entre os cipriotas gregos. Entre nós, a designação como “assuntos de costumes”, ou “causas fracturantes”, sobretudo a primeira, sugere questões relativamente afastadas do debate político central. Mas é a nossa política que está desfasada da realidade europeia dominante. Laurent Jeanneau, na sua análise às razões do voto na FN, em França (Ver “Pourquoi ils votent FN” in Alternatives Economiques n.° 332, Fevereiro 2014), mostra esse desfasamento. “Há vinte anos, a clivagem política ainda se concentrava, principalmente, sobre os valores socio-económicos: deve-se redistribuir a riqueza? Aumentar os salários? O Estado deve intervir na economia? Essas questões marcavam o debate político e os trabalhadores, na época. Estes votavam massivamente à esquerda, enquanto os quadros se inclinavam para a direita”. Apesar da crise financeira e económica ter dado nova relevância às questões de economia política, a tendência de fundo não se alterou. Os “valores culturais” são hoje terreno de confrontação política e da (re)configuração ideológica em curso.

4. Provavelmente existe uma relação directa entre o multiculturalismo de gueto e a viragem, de uma parte substancial da classe trabalhadora / proletariado, à extrema-direita. O multiculturalismo de gueto ocorre quando a presença, num mesmo território, frequentemente suburbano, é feita através de um acantonamento de um grupo étnico, cultural ou religioso, em áreas específicas de grande concentração. Por sua vez, os contactos com a cultura maioritária da sociedade de acolhimento, as interacções com esta e a partilha de valores são mínimos. (Ver “A França e o multiculturalismo de gueto” in Público). “Pequenos brancos” (petits blancs). A expressão tem conotações depreciativas. Surgiu ligada à história colonial francesa e às populações de origem europeia da Ilha de Reunião — no Índico, próxima de Madagáscar —, com pele clara, mas pobres e de estatuto social baixo. Hoje, por transposição de ideias, é aplicada às populações nativas francesas pobres que vivem em contacto directo com populações oriundas de migrações não europeias. (Ver o livro de Aymeric Patricot, “Les petits Blancs: Un voyage dans la France d'en bas” / Pequenos brancos: uma viagem na França das classes baixas, Plein Jour, 2013). É este proletariado autóctone que mais contacta, na vivência do dia-a-dia, com o multiculturalismo de gueto. É aqui que o mal-estar social grassa e é captado pela extrema extrema-direita em interacção directa com outro radicalismo: o dos islamistas. Partes significativas da população do grupo cultural maioritário, habituadas a uma lógica monocultural, têm sentimentos de vulnerabilidade, receio e insegurança. Em termos culturais, sentem-se estrangeiros no seu próprio território. Em termos económicos, são os que estão mais em contacto — e, sobretudo, envolvidos numa competição —, por recursos escassos, nos lugares pior pagos do mercado de trabalho e nas prestações sociais. Vêem o capitalismo neoliberal usar as populações ligadas ao multiculturalismo de gueto para baixar os salários com essa mão-de-obra concorrente. Sentem-se esquecidos, ressentem-se como perdedores da integração europeia e globalização. Nesta sociedade destrutiva duas forças políticas emergem: o radicalismo de extrema-direita e o radicalismo islamista. Os partidos políticos de governo, hoje ideologicamente neoliberais ou multiculturalistas, fracassaram na resposta às preocupações do proletariado e das populações oriundas de outras culturas.

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