Clarificação ou lavar de mãos?

O presidente não engoliu à primeira o prato que lhe puseram à frente, e fez muito bem. Mas a partir daqui, só tem dois caminhos.

O presidente da República tomou a única atitude possível perante as três simulações de acordo que António Costa apresentou aos portugueses: pedir novos “esforços” e mais garantias, com vista a obter a tal “solução governativa estável, duradoura e credível” que o país reclama há mês e meio. As palavras que Cavaco utilizou não foram propriamente meigas. Exigiu ao líder socialista uma “clarificação formal” (o que pressupõe um novo documento escrito) e classificou como “distintos”, “assimétricos” e “omissos” os papéis subscritos entre o PS e os três partidos à sua esquerda. O presidente não engoliu à primeira o prato que lhe puseram à frente, e fez muito bem. Mas a partir daqui, só tem dois caminhos.

O primeiro caminho implica aceitar que esta sua intervenção foi feita a pensar no último volume dos Roteiros, e que se trata de um texto menos para António Costa do que para a Biblioteca Nacional – um pedido de clarificação para memória futura, digamos assim, cujo principal objectivo é permitir a Cavaco poder um dia dizer “eu bem avisei”. Até porque ele gosta muito de dizer “eu bem avisei”. Se assim for, então o pedido de clarificação é pouco mais do que um pró-forma, cuja única real utilidade será facilitar a vida a um futuro presidente da República, caso Costa comece a desviar-se em demasia do caminho com que se comprometeu.

Neste caso, bastará a António Costa enviar para Belém a sua carta de conforto, colocando por escrito aquilo que já repetiu várias vezes oralmente, e receberá a indigitação na volta do correio. Embora o conteúdo dessa carta ainda não seja conhecido à hora a que escrevo, às seis dúvidas oriundas de Belém o líder do PS terá certamente respondido com promessas de rigor nas contas e de amor à Europa. É possível que Cavaco, sempre muito institucional e pouco dado a correr riscos, considere isso suficiente. Entre assumir o risco de poder cometer um erro e a certeza de o erro ser cometido por outro que não ele, Cavaco é bem capaz de se inclinar para a segunda hipótese, para felicidade de António Costa.

O segundo caminho é muito diferente deste e implica que Cavaco esteja mesmo a falar a sério. Ou seja, implica que o pedido de esclarecimento do presidente da República encerre mesmo um desejo de ser esclarecido, e não apenas a disponibilidade para subscrever a fezada colectiva com base exclusiva na palavra do PS. Claro que percorrer esse caminho significaria obrigar António Costa a voltar à mesa das negociações com o PCP e com o Bloco, porque não vejo quem mais possa dar respostas conclusivas acerca da aprovação dos orçamentos de Estado, das moções de confiança ou do respeito pelo Tratado Orçamental. Este seria, sem dúvida, o caminho mais decente e o único que não pactuaria com a substituição de um governo minoritário por outro ainda mais minoritário. Ou seja, seria o único que impediria uma coligação puramente negativa de tomar conta dos destinos do país.

O texto apresentado ontem não esclarece qual dos dois caminhos Cavaco Silva exigiu a António Costa. Mas suponho que o líder do PS não tenha saído de Belém sem saber se a “clarificação formal” exigia apenas a sua assinatura ou se seria preciso juntar as de Catarina Martins e de Jerónimo de Sousa. Ora, se uma resposta oficial do PS já chegou ao presidente, é porque Costa acredita que ela chega. E se chegar, Cavaco imita Pilatos: alerta para o bem, aceita o mal, e no fim lava, muito institucionalmente, as suas mãos.

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