A gordura pode ser o sexto gosto?

Identificamos facilmente o doce, o salgado, o amargo e o ácido. Para alguns já não será tão fácil reconhecer o umami, considerado o quinto gosto. E, entretanto, entrou em cena um candidato a sexto gosto. Está ligado à gordura, é desagradável, e os cientistas já propuseram um nome: oleogustus.

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ADRIANO MIRANDA

Uma fatia de presunto é salgada, um limão é ácido, um café sem açúcar é amargo, um pastel de nata é doce – não há grande espaço para controvérsia em relação àqueles que são considerados desde há séculos os quatro gostos básicos identificados pela nossa boca.

Em 1908 foi identificado pelo cientista japonês Kikunae Ikeda, da então Universidade Imperial de Tóquio, o chamado “quinto gosto” ao qual foi dado o nome de umami (que significa “delicioso” em japonês), mas só em 2002 é que este foi oficialmente reconhecido. Agora, um grupo de cientistas norte-americanos propõe que a lista de gostos básicos inclua um sexto e sugere até um nome: oleogustus.

Há anos que Richard Mattes, do Departamento de Ciências da Nutrição da Universidade de Purdue, no estado norte-americano do Indiana, trabalha com a sua equipa para conseguir identificar de forma clara, em testes sensoriais, o sabor associado à gordura. Ou melhor, aos ácidos gordos que compõem a gordura.

A diferença aqui é essencial: é que a nossa percepção de gordura está profundamente ligada à textura. Identificamos facilmente a textura macia que nos cobre a língua (basta pensar por exemplo num pudim abade de Priscos, que tem uma suavidade que vem do toucinho, embora não saiba a toucinho), mas não tão facilmente o sabor que está por trás dela. E que, dizem os cientistas, isolado não é particularmente agradável.

O desafio foi, portanto, o de dar a provar à equipa de voluntários que participaram nos testes os tais ácidos gordos separados da textura. Os resultados obtidos por Mattes são suficientemente animadores para o levarem, no artigo Oleogustus: the Unique Taste of Fat (disponível online na publicação Chemical Senses) a defender que chegou a altura de oficializar a existência de um sexto gosto, propondo o nome composto a partir das palavras em latim oleo e gustus – o “gosto da gordura”.

“A maior parte da gordura que comemos é na forma de triglicéridos, que são moléculas compostas por três ácidos gordos”, explica Mattes. “Os triglicéridos dão à comida uma textura cremosa, muito apelativa. Mas não são em si mesmos um estímulo de gosto. São os ácidos gordos que se separam dos triglicéridos durante a mastigação que estimulam a sensação de gordura.”

Para que um gosto possa ser considerado básico tem que preencher vários critérios, entre os quais o de ter uma “assinatura química” única e o de estimular receptores especializados na boca. A ideia de que existiria um mapa do paladar na língua, com diferentes locais a identificar diferentes gostos básicos também tem evoluído com o tempo.

O gosto, o paladar e a quimioestesia
Na realidade, a língua está coberta de papilas gustativas (entre 2000 e 5000) cada uma delas com algo entre 50 e 100 sensores de gosto, que se encontram também no resto da boca e garganta. Estes sensores conseguem distinguir os vários sabores. Mas, para termos uma sensação completa é também fundamental o papel do olfacto – daí a diferença entre gosto (que sentimos apenas na boca) e paladar. Existe ainda um terceiro sistema sensorial chamado quimioestesia (chemestesis), que não é nem paladar nem olfacto e que identifica por exemplo o picante da malagueta ou a frescura do mentol.

Os diferentes gostos ajudam-nos a sobreviver: ao identificarmos o doce, por exemplo, sabemos que se trata de um alimento que nos vai fornecer calorias e, portanto, energia, enquanto o amargo nos mantém afastados de potenciais substâncias tóxicas e, supostamente, o umami nos ajuda a localizar as proteínas.

Mas uma das grandes dificuldades em relação a um gosto “novo”, como é o caso do da gordura, é levar as pessoas a identificá-lo – para que isso possa acontecer, é essencial que ele tenha um nome. Um texto publicado em 2012 no Washington Post explicava esse dilema. “Podemos ter uma série de receptores mas não termos as palavras para os descrever”, dizia Michael Tordoff, investigador do Monell Chemical Senses Center, em Filadélfia. Por isso, quando se pedia aos participantes neste tipo de estudos que descrevessem o sabor da gordura, muitos diziam simplesmente que não conseguiam. E mesmo para os gostos mais básicos de que se fala no início deste texto – os tais que seriam relativamente consensuais – nem sempre há acordo, por exemplo, sobre as diferenças entre ácido e amargo.

A “descoberta” do umami enfrentou os mesmos problemas. Robert Krulwich, da National Public Radio (NPR) norte-americana, contou-a num trabalho de 2007 recuando até ao chef francês nascido no século XIX, Auguste Escoffier, e ao seu muito celebrado caldo de carne. Subitamente, surgia nas cozinhas algo que tinha um sabor viciante, que parecia miraculosamente melhorar todos os pratos e que não podia ser reduzido apenas à categoria de doce, salgado, amargo ou ácido.

Mas os clientes de Escoffier estavam mais interessados em comer os seus pratos do que em pensar muito sobre o assunto e por isso não foi em França mas sim no Japão que o químico Kikunae Ikeda começou a interrogar-se sobre o que seria o sabor que fazia com que o seu caldo de dashi (a base de muita da cozinha japonesa) fosse tão delicioso.

O que Ikeda descobriu foi que havia uma característica que unia uma série de alimentos, das algas kombu usadas no dashi aos espargos, passando pelo tomate, a carne e o queijo curado do tipo do parmesão. O elemento comum, percebeu o cientista, era o glutamato. Ikeda escolheu um nome mais sonante, o umami, e criou um produto à base de glutamato de sódio, o Ajinomoto (em japonês aji-no-moto significa “a essência do sabor”), para adicionar aos alimentos e melhorar os pratos mesmo os feitos por quem não tem o génio de Escoffier.

Compreender a obesidade
Mas regressemos ao oleogustus. Os vários artigos sobre o assunto falham também na descrição do gosto dos ácidos gordos, limitando-se a classificá-lo como desagradável. Alguns referem que o mais próximo que podemos chegar a ele é através do conceito de ranço. Richard Mattes, o responsável pelo estudo, explica que no caso da comida rançosa (na qual as bactérias já destruíram os triglicéridos), a alta concentração de ácidos gordos funciona exactamente como aviso de que esta já não está em condições para ser comida. Mas, admite o investigador, em pequenas quantidades é possível que os mesmos ácidos gordos podem tornar uma comida apelativa, tal como acontece com pequenas doses de ácido ou de amargo no chocolate, no vinho ou no café.

Os provadores participantes nos testes começaram por identificar claramente o doce, o salgado, o amargo e o ácido, mas a tendência foi para colocar a gordura no grupo do amargo, classificando-a claramente como um sabor desagradável. No entanto, quando lhes pediram para escolher apenas entre amostras com sabor amargo, umami e gordo, separaram os ácidos gordos num grupo distinto.

Mas de para que serve, afinal, todo o trabalho para isolar e identificar este sexto sabor? “Construir um léxico em torno da gordura e compreender a sua identidade enquanto um gosto pode ajudar a indústria alimentar a desenvolver produtos mais saborosos”, argumenta Mattes. “E, com mais investigação, pode ajudar os médicos e os responsáveis da saúde pública a compreender melhor as implicações da exposição oral à gordura.”  

Outros estudos já demonstraram que algumas pessoas são mais sensíveis à presença da gordura na comida do que outras. Um deles, publicado na revista Journal of Lipid Research em 2012, e citado no artigo do Washington Post, pediu a 21 obesos que provassem três soluções com a mesma textura e identificassem a que era diferente (uma delas tinha ácidos gordos). Concluiu-se que as pessoas que produzem mais uma proteína chamada CD36 identificavam melhor esses ácidos – o que poderá explicar (não foram tiradas conclusões definitivas) por que é que há indivíduos que têm mais necessidade de ingerir comidas com gordura e outros que não as toleram tão bem.

Ainda é muito cedo para saber como é que o oleogustus pode ajudar seja a indústria alimentar seja o combate à obesidade. Tudo indica, contudo, que, com o estudo de Mattes, foi dado um passo importante. Mas se o umami demorou quase um século até ser oficialmente aceite como o quinto gosto, poderá passar ainda muito tempo até o oleogustus entrar no grupo restrito dos gostos básicos – e, sobretudo, entrar na nossa percepção dos sabores daquilo que comemos.

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