Morreu Ana Hatherly, a pintora da palavra

A escrita, o acto de escrever e as possibilidades visuais da palavra e da caligrafia estiveram no centro da sua obra.

Fotogaleria
Ana Hatherly em 2003 Maria José Palla
Fotogaleria
Ana Hatherly quando vivia em Londres dr
Fotogaleria
Ana Hatherly dr
Fotogaleria
Numa sessão do Jornal Falado de Atualidade Literária, organizada pelo ACARTE em 1993. Júlio Almeida
Fotogaleria
“O experimentalismo português entre 1964 e 1984”, uma das obras de Ana Hatherly DR
Fotogaleria
Sem Título, 71, 1971 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica
Fotogaleria
Sem Título, 2003 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica
Fotogaleria
Sem Título, 1964 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica
Fotogaleria
Sem Título, 70, 1970 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica
Fotogaleria
A Idade da Prata, 1993 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica
Fotogaleria
Sem Título, 71, 1971 Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica

Tinha “uma criança muito viva no lugar do coração e punha-se traquinas”, escreveu um dia Valter Hugo Mãe. A artista plástica, poeta, romancista, ensaísta e tradutora Ana Hatherly morreu na manhã desta quarta-feira em Lisboa. Tinha 86 anos.

Nas suas próprias palavras, era uma cega a quem foi dado ver: “Confeccionar imagens é elaborar um roteiro para as mais imprevisíveis viagens porque as imagens constroem-se a si próprias […]. O criador de imagens é um cego a quem é dado ver numa pequena pausa fria.”

Nascida no Porto em 1929, tinha 47 anos quando, em 1976, foi convidada a participar na mais importante bienal de artes plásticas do mundo – a de Veneza. Três décadas depois foi Prémio da Crítica 2003 pelo livro O Pavão Negro (ed. Assírio & Alvim), sucedendo a nomes como Torga, Cardoso Pires, Sophia e Mourão Ferreira. Ana Hatherly teve uma formação ecléctica e um percurso igualmente intenso e multifacetado.

Licenciada em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, fez estudos cinematográficos na London Film School e doutorou-se em Literaturas Hispânicas na Universidade de Berkeley. Foi professora na escola de artes visuais Ar.Co, na Escola Superior de Cinema e no departamento de Literatura Portuguesa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Destacou-se com investigadora do barroco, como ensaísta e escritora, mas talvez seja sobretudo reconhecida como artista plástica.

A sua carreira literária arrancou em 1958 com Um Ritmo Perdido. Começou no ano seguinte as suas pesquisas no âmbito da poesia concreta e experimental. Dez anos depois, em 1969, fez na Galeria Quadrante a exposição que marcou o início do seu percurso nas artes plásticas. A partir de então, a escrita, o acto de escrever e as possibilidades visuais da palavra e da caligrafia estiveram no centro de uma obra em que as fronteiras entre a poesia, o desenho e a pintura se foram tornando cada vez mais elásticas e difusas, não sendo evidente definir onde começa e acaba cada um destes domínios.

Investigadora da poesia visual portuguesa da época barroca bem como das escritas orientais, na sua mão, as palavras repetem-se, viajam soltas pelas superfícies, definem contornos e quebram volumes, articulando pensamento e gesto, mensagem e imagem.

“Em arte a realidade verdadeiramente possível é a que nós inventamos”, escreveu numa das suas Tisanas, os 463 pequenos poemas em prosa que começou a publicar em 1969 e que assumiu como um work in progress de “meditação poética sobre a escrita como pintura e filtro da vida”.

Em Hatherly, a arte como “filtro da vida” tornar-se-ia especialmente clara no período revolucionário. A viver, na altura, grande parte do ano em Londres, chegou a Lisboa no dia 25 de Abril de 1974. “Tinha vindo cá buscar não sei o quê, fiz aqui uma escala a caminho do Egipto, talvez para ver como estava a casa no Estoril”, contou em entrevista ao PÚBLICO em 2004.

Já não seguiu viagem. Ficou para “esses momentos de exaltação” de “grande euforia, grande libertação e grande entusiasmo” dos dias 26, 27 e seguintes, vivendo-os com amigos como os artistas Ernesto de Sousa e Mário Cesariny e o actor e encenador João Perry. Uma experiência paradoxal para uma “rica e privilegiada” que perdeu todas as suas fontes de rendimento, mas que ficou para celebrar e imortalizar a revolução, conservando as suas imagens directas tanto em filme como em trabalhos de colagem.

“A revolução despejou-me. Literalmente. Tive que vender a casa e vendi a mobília e tudo o que tinha, vendi quase tudo aos meus criados, até conseguir arranjar emprego. Sobrevivi com muita dificuldade nos dois anos a seguir à revolução, mesmo assim não deixei de fazer as obras que se conhecem, porque vivo intensamente o que está a acontecer”, contou na mesma entrevista ao PÚBLICO.

Nesse ano, Hatherly realizou Revolução, que estrearia na Bienal de Veneza de 1976, registando em imagens hoje raras os graffitis e os murais revolucionários das ruas de Lisboa.

“Durante um período dos anos 70”, diz o crítico Luís Miguel Oliveira, “o cinema foi uma preocupação artística central para Ana Hatherly, resultado daquilo que ela descreveu, quando esteve há dois anos na Cinemateca a apresentar os seus filmes, como a necessidade de trazer à sua vida alguma ‘novidade’, alguma ‘rotura’, sendo que Rotura veio a ser o título de um filme seu”.

A autora foi então para Londres, onde se licenciou em Cinema, tendo produzido nesse período “vários filmes de animação, habitualmente na fronteira entre o figurativo e o abstracto”, diz ainda Luís Miguel Oliveira, lembrando que Hatherly citava Norman McLaren como a sua principal influência na época.

Mas ao voltar a Portugal “em plena efervescência revolucionária, a seguir ao 25 de Abril, deixou também algumas obras, no campo do documentário, que hoje se vêem como preciosos testemunhos de uma época”, acrescenta o crítico de cinema do PÚBLICO, referindo títulos como Diga-me o que é a Ciência?, encomendado pelo Ministério da Educação, ou o já referido Revolução.

Roturas e descolagens
Em 1977, Ana Hatherly esteve entre os artistas da histórica Alternativa Zero, a exposição com que Ernesto de Sousa se dispôs a abrir a contemporaneidade portuguesa.
A instalação com que participou e o que o público dela fez estariam na base de grande parte do trabalho que desenvolveria nesse período. Intitulada Poema d’Entro, estava pensada como uma câmara de paredes negras forrada com cartazes brancos em que incidia uma luz intermitente. Inesperadamente, o público foi rasgando sistematicamente os cartazes, que a artista teve de refazer uma e outra vez.

Um mês depois Hatherly apresentaria Rotura, uma performance na Galeria Quadrum em que rasgava folhas de papel de cenário dispostas num labirinto feito por 13 painéis enquanto era fotografada por Jorge Molder e filmada por duas equipas de cinema (registos hoje nos arquivos da RTP).

Ainda nesse ano fez a série de nove painéis intitulados Descolagens da Cidade hoje na colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e para os quais a artista saia à rua a rasgava grandes pedaços dos cartazes afixados um pouco por todo o lado montando depois colagens em que propaganda política, anúncios de espectáculos e recortes de publicidade conviviam em grandes manchas compósitas.   

A historiadora da arte Raquel Henriques da Silva identifica várias Anas: “Havia a Ana professora, poeta, especialista da poesia barroca. Havia a Ana militante, das colagens-rupturas dos anos do PREC e da recriação dos graffiti nos últimos anos. Todas eram a Ana, aquela presença bela e azul,  a transbordar de novos projectos, concretizados com a tranquilidade de quem se passou a alimentar também da filosofia  do oriente.”

Falta uma Ana: “Havia finalmente a Ana artista generosa que ao longo dos anos ofereceu  peças maiores da sua obra aos museus que muito amava, também por companheirismo com as suas equipas”, acrescenta a historiadora, que refere como “um privilégio” ter conhecido e trabalhado com esta artista, para quem em 1997 comissariou a exposição Viagem à Índia e Outros Percursos, no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado.

“Ana Hatherly morreu em paz, depois de anos de sofrimento à medida que o corpo foi deixando de acompanhar a imensa energia com que cumpriu a Obra. Vê-la-ei sempre como ‘a mão inteligente’”, diz ainda Raquel Henriques da Silva.

A Mão Inteligente é o título do livro de 2009 (ed. Quimera) que reúne cerca de 200 trabalhos de Hatherly produzidos entre a década de 1960 e 2002, cobrindo as principais técnicas utilizadas pela artista – o desenho, a colagem, a pintura e a gravura –, e com dois textos, um de Henriques da Silva outro do também historiador e curador de arte contemporânea João Pinharanda.

“A mão inteligente era a mão sensível e a mão conceptual de quem inventava os corpos dos desenhos como uma escrita e, sobre os seus mecanismos, compondo mundos metafóricos: exactamente para lá da forma e para lá dos sentidos, que nos tranquilizam e nos inquietam”, explica Henriques da Silva. Que conclui: "[Hatherly] era mais velha, vinha do final dos anos 60, atravessou gerações, movimentos e contra movimentos. Mas fazia-nos sentir que era como nós,  sonhando fazer mais e melhor. Partindo de funda determinação e de uma constantemente renovada vocação.”

João Silvério, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, que guarda um dos maiores núcleos de obras da artista – 200 trabalhos de desenho e alguns dos seus objectos –, tem em curso a preparação, com Maria de Fátima Lambert, de uma exposição sobre Hatherly para a Galeria Municipal, no Porto. Sem data de inauguração prevista, a exposição começou inicialmente por ser trabalhada com a artista. “Articularam-se algumas questões com ela, nos últimos tempos já não era possível”, explicou ao PÚBLICO.

Amigo de Hatherly desde que há 10 anos comissariou “obras várias” para a Galeria Miguel Nabinho, João Silvério descreve a artista como “uma pessoa reservada, de grande exigência, muito rigorosa consigo, primeiro consigo própria, depois com os outros”. Características que conviviam com a “grande generosidade” referida por Raquel Henriques da Silva. “Era uma artista intrépida e surpreendente, uma lutadora inefável, capaz de transmitir uma enorme energia positiva ao mundo.”

 Hatherly escreveu: “O meu trabalho começa com a escrita - sou um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra (...); O meu trabalho também começa com a pintura - sou um pintor que deriva para a literatura através de um processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes, particularmente na nossa sociedade (...)”.

“Vai ser revisitadíssima”
Em 2007, numa entrevista ao poeta brasileiro Horácio Costa, que lhe pede que comente o seu então iminente “cinquentenário poético”, Ana Hatherly diz estar convencida de que “não irá haver comemoração nenhuma”, porque “os portugueses costumam celebrar os seus artistas só depois de eles terem morrido, e às vezes nem assim”. E se há poeta português da segunda metade do século XX que se pode queixar de não ter tido o reconhecimento consensual que mereceria é bem Ana Hatherly, prejudicada pelo seu pioneirismo e pela sua própria versatilidade.

Uma multiplicidade que nunca ameaçou a coesão da sua obra. O poeta e ensaísta Manuel Portela lembra que “o trabalho de Ana Hatherly vai em muitas direcções, da literatura às artes plásticas, à performance e ao cinema”, mas observa também que “toda a sua obra plástica é muito construída a partir da escrita”, e que “mesmo nas suas colagens, desenhos ou gouaches, a escrita nunca está completamente ausente”.

Lembrando o seu interesse precoce pelos calígrafos chineses, como o seu posterior fascínio pelos graffiti, Portela sublinha a importância, na obra de Hatherly, da “dimensão gestual da escrita”. Num texto escrito para o site PO.EX, dedicado à poesia experimental portuguesa, o autor vê nas várias séries de textos visuais de Ana Hatherly momentos de “um movimento reiterado da mão e do olhar entre uma lógica pictográfica que permite tornar visível a escrita e uma lógica logográfica que permite tornar legível o desenho”.

E na citada entrevista de 2007, a própria autora descreve a sua escrita como “uma pintura de signos”, mas acrescenta que também se poderia dizer que “é uma aventura física e mental que aspira a uma forma de conhecimento”.

A ensaísta Rosa Maria Martelo afirma não ter “dúvidas nenhumas” de que Hatherly “vai ser uma autora revisitadíssima”, cuja originalidade só não foi devidamente reconhecida mais cedo porque durante algum tempo “não havia metalinguagens para falar desse trânsito que ela faz entre as artes visuais e a visualidade da escrita”. Quando a autora começou a construir a sua obra, diz Rosa Maria Martelo, “a abordagem que se fazia em Portugal da literatura e das artes visuais era muito estanque, e Ana Hatherly sempre transitou entre diferentes linguagens artísticas, o que acabou por retardar a apreensão da verdadeira dimensão da obra.”.

Mas basta pensar na relevância que hoje estão a adquirir, dentro do campo literário, formas híbridas de criação, do regresso da colagem aos vídeo-poemas, para se perceber que esta é uma boa época para nos apercebermos de quão pioneira foi a obra de Hatherly. E poder-se-ia acrescentar que já as suas primeiras Tisanas cruzavam poesia e micro-narrativa, e mesmo um certo registo ensaístico, de um modo que prenunciava, a décadas de distância, dimensões que só nas últimas décadas se se generalizaram na poesia portuguesa.

Curiosamente, em alguns dos livros mais recentes da própria Ana Hatherly, como Rilkeana (1999) ou O Pavão Negro (2003), sente-se uma atenuação de muitas dessas dimensões mais experimentais, em benefício de “uma voz lírica renovada”, observa Manuel Portela.

O velório de Ana Hatherly realiza-se esta quinta-feira, a partir das 17h, na Basílica da Estrela, em Lisboa, onde no dia seguinte será celebrada uma missa, pelas 14h30, saindo depois o corpo para o cemitério dos Olivais.


Ana Hatherly – The Intelligent Hand - Trailer from Luís Alves de Matos on Vimeo.

Sugerir correcção
Comentar