Homem com graves perturbações mentais causa alarme em Beja

Tribunal de Beja determinou o seu internamento compulsivo, mas o doente permaneceu menos de duas horas na urgência do hospital. O seu discurso tornou-se incoerente, já apareceu completamente nu nas ruas da cidade e já foi agredido.

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António pernoita por vezes num buraco imundo, num local ermo, na zona da estação de comboios de Beja Fábio Teixeira

Numa das zonas mais movimentadas da cidade de Beja, António, um homem com 50 anos, deambula apressado pelas ruas lançando impropérios, recorrendo a uma linguagem preenchida de termos belicistas e dirigida a alguém indefinido, revelando uma grande instabilidade emocional. As pessoas olham entre incrédulas e assustadas o homem completamente nu e coberto de sujidade. A maioria acelera o passo para sair do local com receio de poder vir a ser agredida.

Uma senhora procura, nervosa, o telemóvel na mala de mão. “Ana, leva a menina para dentro [de casa]. Ele anda na rua”. Tinha medo que o homem fizesse mal à sua neta. Não se trata de um episódio isolado. Há mais de uma década que a cidade assiste à progressiva degradação mental de um homem da terra, que a maioria dos residentes conhece. 

A agressividade verbal, uma constante nos momentos em que se encontra mentalmente mais descompensado, poderá vir a ter continuidade em actos de violência física. O medo alimenta alguns, potenciando a animosidade e o estigma em relação a um cidadão “que não tem condições para aceitar regras”, salienta Florival Silva, presidente da Caritas Diocesana de Beja. 

“É uma situação insustentável”, reconhece, insurgindo-se contra a forma como por vezes as pessoas reagem em relação a uma pessoa mentalmente afectada. “Ele precisa de tratamento e não de pancada”, sublinha Florival Silva.

Há dias, o PÚBLICO tentou falar com António e observou marcas nas costas e nas pernas, nódoas negras e feridas que sangravam, possíveis vestígios das agressões de que será por vezes alvo, mas que ninguém confirma. Pediu um euro para comer “um bife com batatas fritas”, repetindo inúmeras vezes e de forma sincopada o seu desejo.

A comunidade local reage a esta situação “olhando para o lado”, critica Florival Silva, que diz não descansar enquanto não resolver este problema que o incomoda há muito. “A que porta podemos bater para o internar?”, interroga-se. O papel da Cáritas reside no apoio que lhe tem prestado na higiene, na alimentação e na roupa, mas mesmo assim o homem “só pontualmente” procura a instituição, apesar das insistências para que apareça com mais regularidade.

Florival Silva também já viu António “completamente nu na rua, sem uma peça de roupa”, e reconhece que a situação causa “desconforto”. Daí o apelo aos serviços de saúde para actuarem, frisando que o doente “já esteve internado em Lisboa, mas poucos dias depois já andava novamente pelas ruas de Beja”. 

Nem a intervenção do juiz da Comarca de Beja, ao determinar o seu “internamento compulsivo” no final de Abril, surtiu efeito. O desconhecimento do seu paradeiro exacto retardou o cumprimento da decisão judicial, obrigando a GNR a pedir a colaboração da PSP para dar cumprimento à sentença, apesar de António ser presença na cidade. 

Só no dia 4 de Junho, conforme o esclarecimento prestado ao PÚBLICO pela presidente da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, Margarida Silveira, é que o homem deu entrada na “urgência geral” da unidade hospitalar, onde permaneceu apenas das 17h33 às 19h08. Recebeu tratamento e voltou à rua, para dormir num buraco imundo, onde por vezes pernoita, num local ermo situado na zona da estação ferroviária da cidade.

“São muitos anos com a doença e sem receber tratamento adequado”, refere Josefa Coelho, presidente da Associação de Reabilitação e Integração Social da Pessoa com Experiência de Doença Mental, com sede em Beja, lamentando que o doente “só receba tratamento quando é detido”, apesar da doença “estar num estado tal que o seu discurso se tornou incoerente”. 

Josefa Coelho diz ter criado com outras pessoas a associação de apoio aos doentes mentais, em 2011, para tentar suprir as carências existentes neste sector no distrito de Beja. “Mas por vários motivos acabamos por não ter condições para apoiar. Tentamos apenas. A burocracia torna difícil o nosso trabalho”, afirma. Para além desta associação, “há muito pouco apoio a [estes] doentes na região”, constata.

O psiquiatra Álvaro de Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direcção-Geral da Saúde, afirmou publicamente, em Janeiro, que deve haver quatro a cinco mil doentes mentais graves a necessitar de “cuidados continuados”, acrescentando que, na realidade, o número de pessoas apoiadas “são cerca de 300 em unidades residenciais e cerca de 600 em unidades sócio-ocupacionais”.

O principal problema, acentuou então este responsável, está na “falta de financiamento do Estado”, admitindo que nestas circunstâncias “ninguém sabe o que se passa com os doentes mentais graves sem acesso a cuidados continuados integrados”.

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