A “terceira via” de António Costa

O plano para a década que um grupo de especialistas entregou esta semana a António Costa é um pouco como a Coca-Cola de Fernando Pessoa: primeiro estranha-se e, depois, entranha-se ou pelo menos deixa no ar a marca da surpresa que ajuda a explicar a desorientação como vários membros do Governo se lhe referiram nos primeiros dias – e eventualmente a pressa na renovação da coligação.

Quando todos esperavam um plano feito à medida de Ferro Rodrigues, Mário Soares ou João Galamba, o grupo de especialistas que redigiu Uma Década para Portugal trouxe à actualidade um programa inspirado nos compromissos da Terceira Via de Tony Blair e de Anthony Giddens, mantendo um pé nas convenções da esquerda e, sob o pretexto da situação concreta, colocando o essencial das propostas no centro. Foi um golpe de asa que, finalmente, nos permitiu delimitar as regras nas quais o jogo das legislativas se vai basear nos próximos meses.

O plano para a década é antes de mais útil a António Costa para poder gerir as clivagens internas do seu partido. Os dados em cima da mesa mereciam reflexão. O PS que se mostrou com o avanço da candidatura de Sampaio da Nóvoa foi um saco de gatos onde as facções se digladiaram com a naturalidade que se costuma verificar nas organizações da extrema-esquerda. Pressentia-se que o derrube de António José Seguro implicava um realinhamento do partido mais à esquerda, o que a nomeação de Ferro Rodrigues para a liderança da bancada parlamentar corroborava. E as frequentes promessas de António Costa em acabar com a austeridade deixavam no ar a sensação de que o PS caminhava a passos largos para um confronto mais ou menos velado com as regras europeias em relação ao défice e à dívida do Estado.

Em vez de dar o peito às balas nesta pequena guerra civil, Costa teve a boa ideia de encomendar a sábios o que podia fazer. A escolha de Mário Centeno para o grupo de trabalho sugeria prudência nas expectativas sobre as propostas. A participação de especialistas moderados como Manuel Caldeira Cabral ou Paulo Trigo Pereira prenunciava a existência de garantias prévias contra radicalismos que voltassem a colocar Portugal no olho do furacão europeu. Mas, como se sabe, os documentos de grupos de natureza tão diversificada acabam por procurar atender a todas as sensibilidades e resultam em arrazoados de propostas sem nexo nem profundidade. Por isso pouca gente se preocupou em seguir de perto o rumo dos trabalhos. Por isso a sua revelação não convocou a solenidade que os grandes momentos da política costumam exibir. Ninguém ousava pensar que João Galamba fosse severamente derrotado pelos economistas independentes, ninguém acreditava que o programa de António José Seguro fosse recuperado, ninguém poderia admitir previamente que este PS é suficientemente heterodoxo para ceder os anéis à conjuntura para manter os dedos do seu código genético.

Francisco Assis, que andou os últimos meses a defender sozinho um programa deste perfil, saudou a sua “consistência programática” e essa apreciação diz muito sobre o que está em causa. O PS move-se inteiro para o centro em matérias como o controlo do défice e dá até um passo para o liberalismo económico puro e duro nas fórmulas que propõe para os despedimentos ou nos cortes permanentes na TSU para as empresas. Ao mesmo tempo, conserva a sua matriz mais à esquerda em agendas como a do rendimento social de inserção, do regresso do imposto sucessório, dos abonos para crianças ou na atribuição de créditos fiscais para quem trabalhe e mesmo assim seja incapaz de superar o limiar da pobreza. Para fechar bem o arco desta construção, o PS assume o papel voluntarista do Estado na aceleração do investimento com fundos estruturais ou na criação de estímulos ao consumo para promover uma terapia de choque no crescimento. Articular todas estas peças num documento com um mínimo de coerência foi um exercício notável.

Tão notável que desorientou o Governo, que tinha acumulado munições para enfrentar comodamente um ataque pela esquerda. As respostas de vários ministros ou deputados, alegando a possibilidade de um regresso do FMI, eram respostas já armadas para outras propostas. Não para a actual que, como muita gente da área do CDS e do PSD reconheceu, é de alguma forma conservadora nos seus propósitos. Claro que o Programa de Estabilidade do Governo é mais prudente do que a proposta do PS, é óbvio que depende menos de receitas futuras e é claro que pretende dar respostas mais rápidas ao problema do défice e da dívida. Mas se essa é a vantagem que tem para oferecer aos portugueses, faz pouco sentido pô-la em confronto com o fantasma do regresso da troika que vislumbra nos planos socialistas. Porque não é assim. Como escreveu Vasco Pulido Valente com acerto, o documento do PS “não passa de uma espécie de ‘emenda’ à política do Governo”. Uma emenda que torna mais fácil o regresso do Bloco Central do que qualquer aproximação do PS à esquerda.

No essencial, o que está em cima da mesa não é o fim da austeridade, mas apenas o abrandamento do seu ritmo. O objectivo de fundo mantém-se, mas os autores do documento introduzem no seu seio a premente criação de condições para que o país possa sair destes longos anos de anomia. Para lá chegar, o documento acredita que o aumento do consumo será a mola para lançar o crescimento, o que, como se sabe, pode ameaçar o reconquistado equilíbrio externo (a balança entre o que exportamos e o que importamos). Se tudo correr bem, a economia poderá crescer ao ritmo de 2.6% até 2019. Mas, será isto revolucionário e irresponsável? Não. É exactamente o que o Governo está a fazer. No último ano o aumento das receitas fiscais e o crescimento voltaram a depender do aumento do consumo interno e quer o PS quer o Governo sabem que essa é uma arma da qual não podem prescindir para consolidar as contas do Estado. De resto, o Governo prevê um crescimento de 2,3% para o período. À custa de quê? Do consumo.

Num sinal de responsabilidade democrática que poucos imaginariam após um ano de casos, golpes e anedotas políticas, os partidos do Governo e o PS clarificaram as suas posições, conservando-se fiéis a si próprios mas mantendo pontes programáticas em torno de matérias que exigem consensos básicos - o mais importante é o cumprimento das exigências europeias em torno do défice, o que continua a afastar deste núcleo os partidos mais à esquerda.

O PS faz o que a conjuntura lhe deixa fazer, mas faz também o que dele esperam os seus eleitores da classe média ao mesmo tempo que se aproxima dos mais pobres e dos que pagaram custos mais altos pela dureza do ajustamento. Os partidos do Governo, pelo seu lado, mantêm a sua coerência e insistem na necessidade de arrumar a casa até ao fim antes de ousar políticas que possam pôr em causa os equilíbrios conquistados. Como escreveu com precisão André Veríssimo, no Negócios, “os portugueses têm duas opções em confronto. Votar num alívio mais rápido da austeridade, mas que envolve mais riscos. Ou no caminho mais certo, mas menos ambicioso, dos partidos do Governo”. O drama da austeridade não acabou esta semana, mas o documento entregue ao PS foi pelo menos capaz de lhe acrescentar uma nota menos fatalista e mais esperançosa. Ou seja, criou uma alternativa. É partir daqui que se fazem boas escolhas.

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