A derrotada Marina Silva é quem tem a chave do poder no Brasil

Os 22 milhões de eleitores de Marina Silva vão decidir quem será o próximo Presidente do Brasil. Com os blocos de Dilma e de Aécio entrincheirados a favor ou contra o “petismo”, a disputa do capital político de Marina domina as atenções. A segunda volta será tão renhida que qualquer falha será fatal.

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Marina Silva não deve permanecer neutra, como na eleição de 2010. REUTERS/Nacho Doce

Quando ainda estava atrás de Marina Silva nas sondagens, o candidato Aécio Neves tinha anunciado o surgimento de uma “onda de razão” que o levaria à segunda volta. Aécio acertou, mas dificilmente poderia ter adivinhado que a onda desse origem a uma torrente capaz de submergir as expectativas de uma vitória fácil de que então se alimentava a cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT).

Daqui até o próximo acto eleitoral, dia 26, Dilma Rousseff vai precisar de acrescentar à sua votação de domingo pelo menos mais nove milhões de votos, ou 9% da preferência dos eleitores. Uma tarefa ainda assim mais fácil do que a de Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que precisa de conquistar mais 16% dos votos para poder ser o próximo Presidente do Brasil. Quer um, quer outro vão ter de disputar esses votos na herança eleitoral de Marina Silva. Derrotada na primeira volta, Marina Silva é quem tem a chave do poder no Brasil. O destino dos 22 milhões de votos que conquistou no domingo são determinantes quer para as esperanças de Dilma Rousseff, quer para as de Aécio Neves.

Ainda na ressaca da surpreendente noite eleitoral de domingo, as cúpulas do PT e do PSDB começaram a lançar as primeiras pontes para captar o apoio do eleitorado de Marina e do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que a apoiava. O PT recordava que a política de alianças com o partido de Marina é antigo. Na sua primeira declaração na noite eleitoral, Aécio Neves manifestou ter “enorme respeito” por Marina Silva, e lembrou que, assim como ele, a ex-candidata “está disputando a oportunidade de representar a mudança”. De vários quadrantes do “tucanato” (o símbolo do PSDB é um tucano) chegaram apelos para uma aliança. O que está em causa é decisivo para a ampla frente política que combate o PT. “Nos últimos 12 anos de governo do PT é a primeira vez que as oposições têm uma chance robusta de conquistar o poder”, diz José Álvaro Moisés, professor titular de Ciência Política na Universidade de São Paulo, um dos promotores de um manifesto em favor da aliança das duas candidaturas que até ontem tinha reunido o apoio de mais de 170 intelectuais.

Marina Silva deixou no seu discurso da noite eleitoral a indicação de que não vai repetir a estratégia de 2010, quando, depois de arrecadar 19,6 milhões de votos, se absteve de apoiar os candidatos que disputaram a segunda volta, Dilma Rousseff e José Serra, do PSDB. Para muitos observadores colocou-se mais perto de Aécio Neves ao afirmar que “o Brasil sinalizou, desde 2010, claramente que não concorda com o que aí está”. Mais claro e contundente, o seu candidato a vice-presidente, Beto Albuquerque afirmou que, como gaúcho (do estado do Rio Grande do Sul), “não leva desaforo para casa”, pelo que não se vê a apoiar Dilma por causa das “calúnias e vilanias" lançadas contra a candidatura de Marina. Se é verdade que tanto Aécio como Dilma se empenharam em desconstruir o perfil de Marina quando a candidata chegou a liderar as sondagens, Aécio foi sempre mais moderado que Dilma. Fernando Henrique Cardoso, que ainda antes da eleição de domingo apelava a uma união das duas candidaturas contra o PT numa segunda volta, é tido como o artífice com melhores condições para federar os interesses dos dois blocos.

Mas, mesmo que haja um apoio formal de Marina e do PSB a Aécio, a volatilidade eleitoral no Brasil, onde os partidos são na maior parte dos casos estandartes com pouco conteúdo programático, não garante uma transferência automática de votos. Logo após o acidente aéreo que vitimou o candidato Eduardo Campos, a 13 de Agosto, Marina foi capaz de firmar “uma aliança temporária entre o eleitorado que não se sentia representado nem pelo PT, nem pelo PSDB, que representava cerca de 20% do total, e o núcleo duro dos eleitores que são sempre contra o PT”, explica Marcos Nobre, cientista político, colunista do jornal Folha de São Paulo e professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Campinas. Só que, “após as críticas que mostraram as inconsistências de Marina, os eleitores anti-PT começaram a perceber que não havia muita diferença entre Marina e Aécio no segundo turno. Ambos tinham as mesmas possibilidades de bater Dilma e refluíram para Aécio”, continua Nobre. São os 15% de voto útil que explicam a vantagem que Aécio conquistou sobre Marina Silva no domingo. Ficam por isso em aberto os outros 20% de eleitores que, por definição, desejavam uma terceira via.

De acordo com as pesquisas de opinião, a maior parte do eleitorado de Marina, entre 60 a 70% do total, mostrava-se disposto a votar em Aécio numa segunda volta com Dilma. “Isso representaria um aumento de 8 a 9% dos votos totais para Dilma e 12 a 13% para Aécio”, calcula Marcos Nobre. Com base nestes cálculos, uma projecção linear pode apontar para um resultado de 52 contra 48% a favor de Dilma no dia 26. Com uma margem tão estreita, todos os votos contam. Tudo indica que a candidata do PT beneficie do apoio dos “nanicos” (candidatos com pouca expressão eleitoral) Luciana Genro, do Partido Socialismo e Liberdade, e de Eduardo Jorge, do Partido Verde, que valem 2,1% do total. Aécio pode contar com o apoio dos restantes, que não chegam a 1,5%. Entrou-se por isso num campo de disputa no qual “uma falha pode determinar o resultado”, avisa Marcos Nobre.

Os dois candidatos têm pela frente dois desafios: o de contrariar, ou amenizar, a geografia eleitoral de domingo e de afinar uma agenda e uma estratégica que pode gerar um combate duro. O objectivo é acrescentar as pontas soltas do eleitorado de Marina à base que conseguiram firmar na primeira volta. Como em 2010, Dilma domina em absoluto no Norte e no Nordeste – no Piauí obteve mais de 70% dos votos – e Aécio consolidou posições no Centro-Oeste, onde se desenvolve o novo mundo da agricultura brasileira, no sudeste, que por si só vale 40% do colégio eleitoral do Brasil, e divide o sul com Dilma. O apoio da família Campos a Aécio no Pernambuco e a herança de uma boa parte dos votos de Marina podem reforçar aí a sua candidatura. Para Dilma a maior dor de cabeça é São Paulo, o maior colégio eleitoral do país, onde a candidata teve um desempenho desastroso (25,8% contra 44,2% de Aécio Neves e 25% de Marina). Para conservar a sua vantagem, Dilma vai ter de reequilibrar a situação em São Paulo.

Mas, para lá da cartografia eleitoral, há um debate substantivo a fazer na campanha que pode fazer toda a diferença. “Aécio vai ter um grande desafio para se mostrar à esquerda”, diz Marcos Nobre. “Vai ter de se dirigir aos eleitores mais pobres, o que é difícil. Pode dar como adquirido a conquista dos eleitores mais conservadores e vai tentar um discurso mais dirigido aos jovens, aproveitando até a sua própria juventude. Julgo que será essa a sua estratégia para chegar ao eleitorado de Marina, que é muito jovem”, acrescenta o politólogo. Na definição das suas mensagens vão entrar, poucos duvidam, os temas da corrupção e da situação económica que determina este ano um crescimento inferior a 0.5% e uma taxa de inflação próxima dos 6,5%. 

Agripino Maia, coordenador da campanha de Aécio, avisou ontem que será “burrice o PSDB fazer campanha suja”. Mas é inevitável que o escândalo da Petrobras, que envolve governadores e senadores da base aliada do PT e um ministro, entre na agenda, principalmente se passarem para o exterior novidades da “delação premiada” que dois dos principais envolvidos negociaram com a Justiça para obterem uma redução de penas. No quartel-general de Dilma preparavam-se, de acordo com a imprensa paulista de ontem, medidas de resposta através de escândalos de corrupção que envolveram altas figuras do PSDB. No confronto, o PT perde por uma questão de actualidade. O “mensalão mineiro” ou o desvio de dinheiro no metro de São Paulo aconteceram há anos.

“Os temas da corrupção sensibilizam o eleitorado. Mesmo entre os eleitores do PT que, apesar de manterem a sua adesão a Dilma, se preocupam com o que está a acontecer”, considera José Álvaro Moisés. Marcos Nobre admite a probabilidade desse cenário, “se houver novos factos no processo da Petrobras ou da vida de Aécio, que muitas vezes circulam na Internet”. No entanto, a “probabilidade de isso acontecer é baixa. Suponho que a campanha para o segundo turno vai ser muito interessante e muito boa. Vai haver uma discussão estratégica sobre o rumo do país, sobre o crescimento, as privatizações, a inflação…”, diz. De resto, “a corrupção não ganha votos. É um discurso mais para os que já estão convencidos”.

Com tantas variáveis em jogo, tudo se conjuga para que a incerteza e a volatilidade que tornaram esta eleição a mais renhida desde 1998 se mantenha na segunda volta. Está tudo em aberto, excepto o regresso da politica brasileira a um braço-de-ferro entre os dois blocos políticos que nas presidenciais conferem alguma legibilidade a um sistema onde o “fisiologismo” (a troca de favores) dita o comportamento dos políticos e dos partidos. Seja quais forem os temas em agenda, seja qual for a mobilização eleitoral no Nordeste, no Rio ou em São Paulo, a eleição “vai depender muito do desempenho dos candidatos”, avisa José Álvaro Moisés. “Como dizia Maquiavel, o que ganhar vai precisar de fortuna e de virtude”, conclui o académico.

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