Vencer a “amarga e vã desconfiança”

Há que marcar posição na Europa pelo voto, reduzindo as fileiras do desinteresse e do silêncio.

A cada eleição para o Parlamento Europeu ressurge o habitual fantasma: a abstenção. Os partidos, antes e depois da campanha, pouco ajudam a combatê-lo, a mobilização em que apostam prende-se sobretudo com a necessidade de ampliar, ou pelo menos garantir que não diminuem, os seus próprios votos. Criam confiança nos eleitores? A resposta destes é mais temida que temível. E o que mais incomoda é o progressivo afastamento daqueles a quem a Europa marca indelevelmente os destinos sem que estes se obriguem, por direito mas também por dever, a marcarem também eles indelevelmente os destinos da Europa. Como se discutiu à exaustão nos últimos dias, não se sentiu a força de um apelo que soubesse sobrepor-se à chicana, ao insulto fácil, à graça duvidosa. Apesar do peso enorme, e da assustadora fragilidade que esse peso comporta, de uma Europa que ainda anda em busca de si mesma, é leve ou displicente, mas sobretudo desconfiada, a forma como os cidadãos dos países da União têm vindo a relacionar-se com ela. Se o eurocepticismo campeia e, com ele, as ameaças da xenofobia, do racismo e dos velhos nacionalismos, devemo-lo ao que não se quis fazer ou se fez mal feito. Sim, hoje hão-de contar-se votos para tirar daí dividendos políticos caseiros, mas antes disso melhor fariam os envolvidos nessa batalha se olhassem para os números do lado, para os que primam pela ausência ou pelo vazio, e pensassem no que eles pesam no seu futuro. Porque uma Europa cujos destinos sejam decididos por um número cada vez menor de cidadãos é uma Europa cada vez mais longe da sua génese e da utopia que a criou. Se muitos acharão isto inevitável, porque para aí os empurra o desleixo face à História, outros entenderão que a sua palavra, a sua opinião, a sua escolha, seja ela qual for, não pode engrossar as fileiras do desinteresse e do silêncio e deve marcar posição no momento do voto. Porque a Europa não é “deles”, como por aí se diz, é também “sua”: porque aí vivem, aí pagam impostos e aí sofrem as consequências do que for decidido sem a sua participação. Sem dizer nada que não tivesse sido já dito, nestes dias ou em anos anteriores, Cavaco Silva lembrou ontem que não votar “é abdicar de um direito”, lembrando que o Parlamento Europeu “é a única instituição” da UE “com representantes directamente eleitos”. Um voto a que 380 milhões têm direito. Quantos o exercerão? Quantos lhe virarão as costas, deixando que outros decidam por eles? Quantos lamentarão, depois, resultados que não influenciaram por mera desistência? No seu curto apelo, o Presidente da República lembrou ainda os 40 anos do 25 de Abril e a conquista, por via dele, do direito ao voto em eleições livres e democráticas. Há 40 anos, antes da queda do regime, um poema de João Apolinário feito canção por Luís Cília dizia assim: “Perde essa amarga e vã desconfiança/ toma a minha mão de amigo e confia”. Se mãos de amigo rareiam, vença-se ao menos a “amarga e vã desconfiança”, em nome de um futuro que não pode ser só de uns, tem de ser decidido por todos.

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