O estranho caso das pensões de sobrevivência

Historicamente, as prestações por morte (i.e. pensões de sobrevivência e subsídio por morte) foram criadas com o objetivo de suprir as insuficiências financeiras dos cônjuges sobrevivos, em particular as mulheres, conforme fica aliás expresso no preambulo de um diploma de 1973 que institui para os funcionários públicos um desconto obrigatório para esta eventualidade, e no qual se refere que a inexistência deste tipo de proteção de carácter obrigatório originou “situações chocantes (…) nomeadamente quanto a certos contribuintes que ocuparam altos cargos no funcionalismo civil e militar (…) deixaram, por morte, à família pensões insignificantes e manifestamente desajustadas das suas necessidades e posição social”.

Atualmente, o financiamento destas prestações no âmbito do Sistema Previdencial da Segurança Social é assegurado pelas contribuições das empresas e quotizações dos trabalhadores através de uma parcela da denominada Taxa Social Única (2,39 pontos percentuais, ou seja, 6,88% da taxa global de 34,75%), sendo, em situações de insuficiência de receita, complementarmente financiada pelo Orçamento do Estado (OE), situação que, aliás, se tem observado nos últimos anos. Com efeito, se em 2007 o montante pago em prestações por morte atingiu os 1.624,1 milhões de euros (M€), enquanto a receita (2,39 p.p. da TSU) se situou nos 850,8M€, gerando um défice de 773,3M€, em 2012 esse défice aumentou para 952,3M€.

É neste contexto de desequilíbrio entre despesas e receitas que desde 2011 foram tomadas diversas medidas no âmbito do subsídio por morte, deixando este de representar seis vezes o valor da remuneração de referência (sem limite) para passar a corresponder a um valor máximo de 2.516€ em 2012 e um valor fixo de 1.258€ a partir de 2013.

De igual forma, as pensões de sobrevivência foram sendo alvo de um conjunto de medidas, de entre as quais se destaca a aplicação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) e, mais recentemente, com a entrada em vigor do OE para 2014, o condicionamento do valor das pensões em pagamento à existência de rendimentos resultantes de outras pensões.

Em face do anterior, duas questões se colocam. É financeiramente justificável alterar as condições de atribuição das prestações por morte? As alterações legislativas efetuadas justificam-se e respeitam princípios de equidade?

Relativamente à primeira questão, a resposta pode ser obtida a partir dos números apresentados. Desde 2007 o desequilíbrio médio anual na componente de prestações por morte do Sistema Previdencial situou-se em valores próximos dos 895M€.

Relativamente à segunda questão a resposta não é tão clara. Com efeito, se a alteração do subsídio de morte não gera grande discussão (por não afetar “direitos” em pagamento e por ser uma prestação com poucos equivalentes a nível europeu), as alterações efectuadas ao nível das pensões de sobrevivência geram algumas reservas, em particular no que respeita à sujeição a uma “pseudo” condição de recursos de uma prestação do Sistema Previdencial.

Com efeito, a condição de recursos deve ser aplicada, do ponto de vista conceptual, a prestações cujo financiamento resulta da solidariedade da sociedade, isto é, financiadas diretamente pelo Orçamento de Estado. Por outro lado, as características desta “condição de recursos” (muito distinta daquela que é aplicada a outras prestações sociais) geram iniquidades significativas, na medida em que só considera os rendimentos provenientes de outras pensões, conduzindo a que, por exemplo, um beneficiário que receba uma pensão de sobrevivência de 750€ e uma pensão de velhice de 1.500€ veja a sua pensão de sobrevivência cortada, enquanto um beneficiário que não receba uma pensão de velhice mas um vencimento (ou rendimento predial) de igual montante verá o valor da sua pensão de sobrevivência preservado.

Se as alterações que foram efetuadas geram algumas dúvidas, muitas outras ficaram por fazer e que importaria identificar. Em primeiro lugar, é urgente sujeitar a uma verdadeira condição de recursos o complemento social (em 2013 atingiu os 189,1M€), atribuído por via do Sistema de Proteção Social de Cidadania, e que permite assegurar um valor mínimo para a pensão de sobrevivência (neste caso sem se garantir que só é atribuído a quem verdadeiramente necessita).

Em segundo lugar, importaria alterar a idade a que um cônjuge sobrevivo acede a uma pensão de sobrevivência vitalícia dos atuais 35 anos (que em termos práticos corresponde a 30 anos) para, por exemplo, os 45 anos (conforme acontece na Alemanha), passando a pensão, até esta idade, a ter um carácter temporário (por exemplo, 5 anos) atentos ao aumento da esperança média de vida e à possibilidade do cônjuge sobrevivo poder reorganizar a sua “vida profissional”.

Em terceiro lugar, importaria alterar o direito das pessoas casadas mas separadas de facto (por vezes há mais de vinte anos) e sem qualquer dependência económica do falecido, enquanto vivo, poderem beneficiar de uma pensão de sobrevivência.

Em quarto lugar, é urgente a adoção de medidas que permitam controlar a atribuição de pensões de sobrevivência aos unidos de fato, quer porque a prova dessa união resulta simplesmente do “compromisso de honra” do unido de fato sobrevivo, quer porque um beneficiário de uma pensão de sobrevivência que esteja unido de fato pode continuar ilegalmente a receber a prestação uma vez que oficialmente não é possível apurar da existência dessa união.

Por fim, entende-se essencial alterar o valor da pensão de sobrevivência que atualmente, no cúmulo entre cônjuge, ex-cônjuge, descendentes e enteados, pode atingir 110% da pensão do falecido.

Estou certo que se a “sobrevivência” política não se antepuser ao espirito reformista, as propostas anteriores serão rapidamente adotadas, contribuindo assim para o tão necessário equilíbrio do Sistema de Segurança Social.

Professor da Universidade Lusíada e antigo vice-presidente do Instituto de Segurança Social. O autor escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.

Sugerir correcção
Comentar