Choque do IRS rendeu ao Estado 31 mil milhões de receita em três anos

Agravamento dos impostos encolheu a carteira dos portugueses, abriu um novo capítulo no nível da carga fiscal, dividiu e amarrou a coligação. Vítor Gaspar protagonizou o “enorme aumento”, Maria Luís Albuquerque fica, para já, como o rosto da austeridade na continuidade.

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Cinto apertado sobre os contribuintes, carga fiscal em valores recorde e mais receita fiscal nos cofres do Estado. Nunca, como nos últimos três anos de presença da troika, os contribuintes portugueses sentiram no bolso de forma tão acentuada o impacto de tantos agravamentos e alterações fiscais. IRS, IVA, IMI, automóveis, tabaco, bebidas alcoólicas, produtos petrolíferos – poucos foram os impostos que ficaram a salvo de agravamentos ou alterações fiscais, lançados para a receita fiscal ajudar a baixar o défice público.

A receita foi determinante para a consolidação orçamental. E o grande impulso veio do IRS, o imposto mais visado pelo Governo de Pedro Passos Coelho ao longo dos três anos de presença da missão externa. De 2011 a 2013, o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares deu ao Estado 31.224 milhões de euros de receita (mais de um terço conseguidos em 2013, o ano do “enorme aumento de impostos” protagonizado por Vítor Gaspar, então ministro das Finanças).

As mudanças começaram ainda antes da chegada da troika, mas foi durante o resgate – sobretudo no ano passado – que mais se fez sentir este choque fiscal. As diferenças de rendimento são abissais quando se comparam os impostos pagos em 2010 (o ano anterior às primeiras grandes alterações no IRS) e em 2014 (o segundo ano em que a carga fiscal se mantém num nível histórico).

Simulações feitas pela consultora PwC para o PÚBLICO mostram que as alterações no IRS penalizam todos os rendimentos. E que são as famílias com menos recursos quem mais sente o agravamento. A conclusão retira-se na comparação de diferentes graus de rendimentos e diferentes situações familiares, depois de consideradas todas as alterações introduzidas ao imposto, desde as mudanças de escalões e taxas às reduções de benefícios fiscais, passando pela introdução da sobretaxa de 3,5%.

Há casos extremos em que o agravamento do imposto chega aos três dígitos percentuais (quando é simulado o impacto dos cortes nas deduções à colecta em determinadas despesas de saúde, educação e encargos com imóveis). Veja-se o exemplo de um casal com um filho a cargo, em que cada um dos titulares (ambos a trabalhar no sector privado) tem um rendimento bruto mensal de 900 euros. Sem considerar as deduções à colecta, um rendimento anual de 25.200 euros pagaria 2329,51 euros de IRS em 2010; quatro anos depois, sente um agravamento de 23,75%, pagando mais 553,21 euros.

O impacto é mais significativo quando se olha para uma simulação que inclui as deduções à colecta. Neste caso, pressupôs-se que o casal teria despesas de saúde no valor de 200 euros, mais 450 euros de gastos com educação, juntando ainda 3000 euros de encargos anuais com imóveis. Nesta situação, o imposto final dispara 176,2%. Se, em 2010, o casal pagava 712,81 euros de imposto, em 2014 tem de contar com o pagamento de 1968,76 euros de IRS. Na prática, a família sente uma diferença de 1255,95 euros no rendimento anual (de 24.487,19 euros em 2010 para 23.231,24 euros em 2014).

Numa situação familiar idêntica, mas aplicada a rendimentos de 3000 euros mensais por cada membro do casal (84 mil euros anuais), o IRS a pagar a mais continua a ser superior, mas o seu agravamento percentual é inferior ao das famílias com rendimentos inferiores.

Excluindo as deduções à colecta, o aumento é de 9,16% (o IRS passa de 20.430,67 euros para 22.301,2 euros); na simulação de despesas, o imposto a pagar sobe 29,22%, passando de 17.558,07 euros para 22.689,12 euros. Significa isto que o rendimento líquido de IRS caiu 5131,05, baixando de 66.441,93 euros anuais para 61.310,88 euros. Nesta simulação, foram considerados 2500 euros de despesas em saúde, 3000 euros em gastos de educação e 9000 euros de encargos com juros e capital de imóveis.

As situações repetem-se noutras situações familiares: solteiros sem dependentes, casados com dois dependentes, pensionistas, funcionários públicos com ou sem dependentes. O impacto mede-se pelo nível de rendimentos. No caso dos funcionários públicos, as simulações têm já em conta os cortes salariais actualmente em vigor. E a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES), no caso dos reformados.

Desvios e aumentos
O forte agravamento decorre das alterações introduzidas nos escalões de IRS em 2013, que vieram atenuar a progressividade do imposto, ao haver uma redução de oito para cinco escalões, com um agravamento das taxas (actualmente de 14,5% a 48%). Mas não só. Em vigor está uma sobretaxa de IRS de 3,5% aplicada aos rendimentos acima do salário mínimo, à qual se soma a taxa adicional de solidariedade (progressiva) sobre os rendimentos mais altos (aplicada desde 2010, mas agravada em 2013). E é ainda preciso ter em conta o impacto as redução dos benefícios fiscais em vigor desde 2012. Em vez de 30%, só são deduzidos à colecta de IRS 10% das despesas em saúde; nos gastos relacionados com imóveis, o tecto passou de 30% para 15%. Só em 2013, a chamada “despesa fiscal” do Estado associada a deduções à colecta do IRS encolheu 9,5%, baixando para 104,3 milhões de euros (menos 11 milhões de euros face a 2012).

Do “desvio colossal” no défice ao “enorme aumento de impostos”, os últimos três anos ficam marcados por uma dieta de austeridade que teve no agravamento fiscal um pilar sem equivalente na história recente da democracia portuguesa. Vítor Gaspar, prestes a assumir em Washington um cargo de topo no Fundo Monetário Internacional (FMI), como director do departamento de assuntos orçamentais da instituição, será lembrado como o ministro das Finanças que protagonizou o “enorme aumento de impostos” – a expressão que, de certa forma, sintetiza a estratégia orçamental seguida nos últimos três anos pelo Governo para evitar derrapagens nas contas públicas e assegurar o cumprimento do défice. Mas o aperto fiscal começa a sentir-se ainda antes disso, com um agravamento dos impostos sobre o consumo e, no caso do IRS, sobre os rendimentos mais altos.

Nos primeiros PEC, ao tempo do Governo de José Sócrates, em 2010, é introduzido um novo escalão de IRS para os rendimentos acima de 150 mil euros, é aplicada uma sobretaxa extraordinária e o IVA sobe um ponto percentual em todas as taxas, chegando a 21% no escalão normal. A entrada em 2011, quando se intensifica a pressão sobre Portugal, ficou marcada por uma nova subida do IVA, de 21% para 23%. E ainda pela introdução de um tecto nos benefícios fiscais.

Consumado o resgate, começam a suceder-se com mais intensidade as medidas de austeridade para manter o controlo das finanças públicas. O prenúncio do que seria a estratégia orçamental do Governo foi desvendado logo em Julho de 2011, quando Vítor Gaspar, recém-chegado ao Terreiro do Paço, anuncia uma taxa extraordinária de 3,5% em sede de IRS, aplicada aos rendimentos acima do salário mínimo, correspondendo a um corte de metade do subsídio de Natal.

Foi esta a principal resposta ao “desvio colossal” do anterior Governo, a expressão que Gaspar colocaria no dicionário corrente da política orçamental para falar do défice herdado do executivo de José Sócrates. A sobretaxa vigorou apenas em 2011, mas seria retomada em 2013, como parte da resposta do executivo à declaração de inconstitucionalidade sobre os cortes nos subsídios de Natal e férias dos funcionários públicos e pensionistas.

Impacto da recessão
A execução orçamental começou por não correr de feição ao Governo de Passos, com a entrada da receita fiscal a ficar abaixo do previsto para 2011 e 2012. Mas, no final do ano seguinte, o montante arrecadado viria a superar as previsões em praticamente todos os impostos. O Governo estava a contar com 34.903,2 milhões de euros, mas, graças ao impulso dado pelo perdão fiscal lançado no final de 2013, foram arrecadados em impostos 36.252,5 milhões.

O IRS foi decisivo. Nos três primeiros anos da intervenção da troika (2011, 2012 e 2013), representou 30,4% de toda a receita fiscal arrecada. Ao todo, são 31.224 milhões de euros dos 102.652 milhões que entraram para os cofres do Estado nesses três anos.

Em 2011, o Estado arrecadou 9831 milhões de euros em IRS, mais 10% do que no ano anterior; no ano seguinte, em que a sobretaxa foi extinta (vigorando os cortes nos subsídios de férias e Natal), a receita de IRS sofreria uma queda abrupta, de 7,6%; mas em 2013 já disparou 35,5%, com o IRS a garantir 12.307 milhões de euros para os cofres do Estado.

Não foi só no IRS que a receita fiscal se retariu em 2012, o ano em que o país mergulhou na maior recessão desde o 25 de Abril de 1974, com o consumo privado a registar uma queda a pique e o tecido empresarial a enfrentar uma vaga de encerramentos, falências. Nesta altura, o desemprego estava já em níveis máximos e que o Governo e a troika consideravam preocupantes. A maior queda assistiu-se no IRC, onde as recitas baixaram 17,2%, ao mesmo tempo em que o motor da receita fiscal, o IVA, descia 1,9%, o equivalente a 251,5 milhões de euros.

É nesta altura que o ministro das Finanças volta a recorrer ao IRS, anunciado o regresso da sobretaxa, um imposto muito menos susceptível de flutuações. Foi, aliás, com Gaspar que a política fiscal assumiu o salto de gigante no interior da política orçamental. Uma estratégia mantida por Maria Luís Albuquerque, rosto da austeridade na continuidade. Mesmo com um discurso nem sempre alinhado no interior da coligação de Governo.

Na recta final do ano passado, o perdão fiscal lançado n seria determinante para a execução da receita e, por conseguinte, para o défice ficar em 4,9%, abaixo do limite fixado com a troika. Segundo a Organização para a Cooperação e para o Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal foi, entre os 34 membros da instituição, o país onde a carga fiscal mais aumentou no ano passado, passando a representar 41,1% do PIB, um nível recorde (nesta equação, a OCDE contabiliza, para além dos impostos sobre o rendimento, as contribuições de trabalhadores e empregadores para a Segurança Social).

A política fiscal foi razão para desentendimentos e contradições no interior da coligação PSD/CDS-PP. Mas acabou por ser também o cordão umbilical que, na hora da remodelação governamental, amarraria Paulo Portas a Pedro Passos Coelho e à coligação. A estratégia para reduzir o défice estava traçada. Quando, a 15 de Outubro de 2013, o executivo apresenta o Orçamento do Estado para 2014, Gaspar já não está no Governo, mas as estratégias orçamental e fiscal, cruzadas, não sofrem desvios. A carga fiscal mantém-se num patamar recorde, com o IRS ao mesmo nível e sem alívio fiscal do lado dos impostos sobre o consumo.

Uma confissão do ministro da Economia, António Pires de Lima, sobre o facto de o IVA se manter este ano em 23% veio a revelar-se o tom do discurso do Governo em matéria de impostos, com Pires de Lima a declarar-se “um soldado disciplinado e leal dentro deste Governo”.

Depois de o Governo dizer que no Documento de Estratégia Orçamental (DEO) não iria incluir medidas de austeridade que passassem por aumentar os impostos, o Governo veio na última semana assumir que o IVA volta a aumentar no próximo ano e que os trabalhadores no activo passam a descontar mais em contribuições sociais, como parte da estratégia para substituir os cortes nos salários dos funcionários públicos e nas pensões. Em 2015, haverá um novo aumento do IVA, de 0,25 pontos percentuais, que será consignado aos cofres da Segurança Social. Ao mesmo tempo, a Taxa Social Única sobe de 11% para 11,2%.

Quanto ao IRS, ainda não há fumo branco sobre a reforma lançada pelo Ministério das Finanças, nem uma decisão sobre uma eventual descida da sobretaxa do IRS. Para já, a ministra das Finanças clarificou que o essencial do grupo de trabalho não é definir uma descida do imposto, mas analisar a sua estrutura.

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