Fisco com isco

Qual a autoridade de um Estado para exigir aos cidadãos que cumpram a lei, se é ele que transforma a cobrança de impostos num jogo de sorte e azar?

Há uma nova frase que entrou no léxico do comércio a retalho em Portugal: “Quer factura com contribuinte?” Esta frase tem uma variante que passa apenas pela pergunta: “Quer factura?” Diligentes, os empregados do comércio aberto ao público não hesitam em perguntar se os clientes querem mesmo que eles, em nome dos seus empregadores, cumpram a lei que diz que o recibo deve ser passado.

 Mas não parecem fazê-lo motivados pelo desejo de que a lei seja cumprida. Tudo mostra que o fazem para responder solícitos ao interesse dos fregueses em ter um recibo que possam trocar por um talão no sorteio de automóveis da marca Audi que o Governo promove. O primeiro sorteio é já na próxima quinta-feira, dia 17.

De repente, o país adere à febre de mais um sorteio, de mais uma taluda. Desta vez o jogo é uma táctica do Governo para aumentar a cobrança de impostos ao Estado. O sorteio de automóveis é assim uma espécie de isco do fisco, é o balde de plástico que pode sair de brinde a quem contribui para o aumento do volume de facturas.

A questão que se me coloca neste folhetim do sorteio de automóveis entre quem tem facturas declaradas às Finanças das suas compras não é qualquer fúria moralizadora contra quem joga. Quem sou eu para estar contra a vontade de jogar de cada um. Confesso até que tenho por hábito e tradição familiar jogar na Lotaria do Natal. E por vezes até me lembro de jogar no Euromilhões. Mais: joguei três vezes nas máquinas do Casino do Estoril e uma vez nas do Casino da Figueira da Foz. Além de que tenho a melhor das memórias dos campeonatos de King da minha adolescência e das tardes passadas a jogar Monopólio. Concluindo, não tenho nada contra quem joga.

O problema desta novidade de sortear automóveis mediante cupões obtidos com facturas é o que ela representa em termos de respeito pela autoridade do Estado e o desgaste que esta prática exerce sobre essa autoridade. A partir de agora não se pagam impostos em Portugal porque essa é a forma de todos os cidadãos contribuírem para o bem-comum e para o bem público e deste modo assegurarem a manutenção dos apoios dos serviços estatais prestados à sociedade, mas porque queremos ganhar um carro, porque estamos interessados em ganhar um brinde, estamos interessados no balde de plástico.

Esta prática não é uma invenção do Governo português. Corresponde a uma prática que existe há anos na sociedade e que está disseminada. Mesmo na comunicação social há largos anos que foi adoptada para tentar inverter a tendência para a quebra das vendas dos jornais. Nos anos 90 do século passado, foram vários os jornais e revistas que aderiram à oferta de livros, jogos, cd, serviços de louça, talheres, peças de roupa – numa táctica de marketing que pode ser muito inteligente do ponto de vista das técnicas de mercado, mas que em nada parece ter contribuído para contrariar e menos ainda para resolver os problemas do declínio da imprensa.

O que o Governo agora fez foi apenas alargar ao Estado o que são as técnicas mais vulgares do marketing e as mais banais tácticas de mercado para atrair clientes. E nisso, como dissemos, repete o que já foi feito feito. O que é novo e questionável é que este tipo de tácticas de marketing seja aplicado à cobrança de impostos pelo Estado. Para mais associadas ao jogo, ou seja, além de transformar a contribuição cidadã que é o pagamento de impostos num produto de mercado que está sujeito ao apelo do marketing sobre os seus clientes – o novo estatuto dado aos contribuintes –, o Estado transforma a operação cívica de contribuir para o bem público numa operação de risco, de sorte ou azar.

E o que se questiona é se o pagamento de imposto deixa de ser um dever do cidadão que quer contribuir para o bem-estar da sociedade e para o bem comum e passa a ser uma forma de ganhar prémios, um jogo, uma prática de risco e de sorte ou de azar, então com que autoridade é que o Estado pode depois exigir que haja cumprimento fiscal? E o que fará o Governo quando não tiver mais automóveis para sortear? Como pretende o Governo incentivar os cidadãos a que paguem impostos depois de abrir a porta que está a abrir? Mais: qual a autoridade de um Estado para exigir aos cidadãos que cumpram a lei, se é ele que transforma a cobrança de impostos num jogo de sorte e azar?

Cada vez que um empregado de loja pergunta se queremos factura, uma amiga minha optou por responder: “Não preciso, já tenho um Audi, vou até no terceiro.” Por mim, resolvi dizer sempre: “Não, obrigada. Não conduzo, nem sequer tenho carta de condução.” É que quem não se dá ao respeito não pode esperar ser respeitado…

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