A esquerda, a direita e Vladimir Putin

Precisamos hoje de um realismo progressista e não do cinismo conformista e ressentido dos que ficaram parados na história e acham, por isso, que a história parou.

Num país como Portugal, onde o culto dos consensos é inversamente proporcional à capacidade em os concretizar, existe, à esquerda e à direita, um paradoxal consenso negativo que a partir de pólos contraditórios considera justificáveis a anexação da Crimeia e a política agressiva da Rússia em relação à Ucrânia.

À direita a expansão imperial da Rússia é natural e inevitável e apenas os mentecaptos podem imaginar que é possível (ou desejável) impedir Moscovo de fazer tudo o que quiser. De resto, se Putin fizer o mesmo ao Leste da Ucrânia, assume-se que daí não virá grande mal ao mundo. É um problema “deles”, vale a lei do mais forte. E não é sequer certo que a Ucrânia seja um país, argumenta-se.

À esquerda questiona-se a legitimidade moral do Ocidente e assume-se que, por os habitantes da Crimeia serem maioritariamente russos, os resultados do referendo devem ser considerados válidos. Aceita-se o precedente do Kosovo, a pedra-de-toque da argumentação de Putin para justificar a anexação. E defende-se que quem violou a ordem internacional invadindo o Iraque, em 2003, devia ficar calado.

É um facto que o Iraque foi um desastre e uma ilegalidade que os EUA ainda não acabaram de pagar; a independência do Kosovo um erro e uma precipitação, mas que ocorreu em circunstâncias incomparáveis com o que se passa na Crimeia.E oblitera-se também que o actual Presidente dos Estados Unidos não apoiou a invasão do Iraque e que a sua política externa está nos antípodas da do seu antecessor.


O mais grave nesta argumentação é a ideia de que se os americanos um dia invadiram, então os outros têm direito a fazer o mesmo. O primarismo desta abordagem toca as raias do absurdo. Uma mesma pulsão quase salazarista parece habitar estas visões da crise ucraniana. A hipocrisia e o moralismo de vão de escada fazem a ponte entre perspectivas ideológicas diferentes, que têm em comum a aceitação passiva destes acontecimentos, ignorando a ameaça gravíssima que eles representam para a Europa e para a segurança global.

É inaceitável comparar um referendo ilegal, como o da Crimeia, com os casos da Catalunha ou da Escócia. Os catalães e os escoceses que defendem a independência querem referendá-la no quadro de um processo negociado. Nenhum deles irá escolher ser anexado por uma potência que os invadiu militarmente. Podemos admitir que um referendo legal teria chegado eventualmente ao mesmo resultado, a integração da Crimeia na Rússia.. Se assim fosse, nada haveria a dizer. Mas o respeito pelas regras não é uma questão menor.

O extraordinário é uma visão nacionalista conservadora e uma visão supostamente progressista convergirem na obliteração do papel da Ucrânia. Ambas pensam nos termos da velha lógica da Guerra Fria e do confronto leste-oeste. Ora um dos pontos cruciais de toda esta história é precisamente o direito dos ucranianos a serem eles (e não Vladimir Putin) a escolher que futuro querem para o seu país.

Aliás, um mito comum relativamente à questão ucraniana é o extrapolar do peso da extrema-direita no pós-revolução de Maidan. A questão, no entanto, é outra. A extrema-direita será tanto mais poderosa quanto o Ocidente for incapaz de apoiar o novo poder de Kiev.

Olha-se para a Ucrânia como se fosse um país artificial, dividido em dois e com um fraco sentimento de identidade nacional. Mas as identidades nacionais são construções. Embora esteja muito longe de ser uma democracia exemplar, a bipolaridade cultural da Ucrânia permite-lhe ser um país mais aberto do que a Rússia, por exemplo, A resistência a Moscovo é um factor constitutivo da identidade ucraniana. A Europa e os Estados Unidos precisam de aproveitar o momentum desta crise para levar os ucranianos a romper com o sistema corrupto que domina o país desde a independência.

Não é fácil. Mesmo os europeus (e, inicialmente, os americanos) reagiram de forma apática e resignada às investidas imperiais da Rússia, que vê agora os capitais fugir do seu país e começa a perceber que a factura da sua fuga para a frente poderá chegar mais cedo do que o previsto. Mas Putin está longe de ter desistido do seu jogo. É uma corrida de fundo.


A crise ucraniana prova que o combate por um sistema global baseado no respeito pela legalidade e pelas liberdades é necessário e constante. Estão em jogo duas visões opostas: a de um mundo governado pelas relações de força ou a de um mundo regido pela cooperação entre Estados. Foi a força desta visão que Obama sublinhou, quando tratou a Rússia como uma “potência regional”.

Precisamos hoje de um realismo progressista que mantenha viva a convicção de que a democracia está na ponta final de um combate global, não do cinismo conformista e ressentido dos que ficaram parados na história e acham, por isso, que a história parou.

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