A força das coisas

A Rússia, excepto por meia dúzia de “oligarcas”, não precisa tão desesperadamente da Europa.

Desfazer um império, e um império do tamanho da URSS, não é uma operação fácil. Sobretudo quando se trata de redefinir fronteiras e a Federação Russa, ao contrário, por exemplo, da Áustria, continua a ser uma grande potência.

Na Ucrânia, o caso ainda se torna mais difícil. Na II Guerra Mundial, a Alemanha só invadiu entre cinco e dez por cento do território da Rússia propriamente dita, mas conseguiu ocupar a Ucrânia inteira. Em 1945, o Exército Vermelho tinha proporcionalmente mais gente da Ucrânia do que de qualquer outra República da União; e hoje, da Polónia à Crimeia, a esmagadora maioria da população indígena é bilingue. Separar o que esteve tão junto traz necessariamente complicações. Putin quer a reconstituição, pelo menos parcial, do império. A Europa e a América não querem.

Não se percebe porquê. Em primeiro lugar, depois do Iraque e do Afeganistão, a opinião americana não consentiria uma nova guerra e, principalmente, uma guerra que ao menor incidente poderia degenerar numa catástrofe nuclear. A Europa que durante 60 anos viveu para o consumo e para o Estado social está desarmada. Não vê bem um conflito em que um dos lados se recusa a participar. Restam as sanções (evidentemente, económicas). Só que as sanções prejudicariam muito mais a Europa (embora não a América) do que a Rússia. A Alemanha precisa como de pão para a boca do gás russo. E a Alemanha e a Inglaterra dependem do mercado interno e dos capitais russos para saírem da crise e crescer a um ritmo razoável. A Rússia, excepto por meia dúzia de “oligarcas”, não precisa tão desesperadamente da Europa.

O problema começou, de resto, porque a Ucrânia se preparava para assinar um acordo com a UE e a Rússia resolveu impedir essa inclinação para o Ocidente, porque pretende que a Ucrânia venha a aderir a uma futura união euro-asiática, que eventualmente servirá para opor à Europa uma esfera de influência, económica e ideológica, sob o domínio de Moscovo. A ideologia “euro-asiática”, como se calcula, não é democrática, nem adepta do liberalismo ou do Estado de direito. É autoritária, discriminatória, racista e manifestamente “fascizante”. Não parece que seja no imediato uma terrível ameaça para a América ou para a Europa. Como não parece que o Ocidente, apesar das suas piedosas declarações, fosse capaz de sustentar uma Ucrânia falida, com uma economia arcaica e uma quase total dependência energética da Rússia.

Era com certeza melhor que, nesta altura, se reconhecesse a realidade.

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