Ciência à deriva

Já ninguém se lembra do programa do Governo, mas ele está à distância de um clique. Na área da ciência começava por tecer rasgados elogios aos governos precedentes: “Graças às políticas de investimento de sucessivos governos anteriores, a ciência em Portugal representa uma das raras áreas de progresso sustentado no nosso país, tendo vindo a dar provas inequívocas de competitividade internacional.”

Comprometia-se a manter a rota: “O programa deste Governo inclui, portanto, o compromisso de manter e reforçar o rumo de sucesso da ciência em Portugal.” No topo das prioridades estava a qualificação de jovens: “Investir preferencialmente no capital humano e na qualidade dos indivíduos, particularmente os mais jovens.” Pretendia, assim, “assegurar a permanência dos melhores investigadores actualmente em Portugal”.

Até o Governo se esqueceu do seu próprio programa num dos raros sectores em que havia um amplo consenso. Não foi apenas o ministro da Economia, mas também o primeiro-ministro que recentemente criticou a política de ciência dos governos anteriores, incluindo os do seu próprio partido. E a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), com a complacência do ministro da Educação e Ciência, decidiu que o investimento no capital humano não era afinal uma boa ideia, tendo cortado de uma forma abrupta e radical as bolsas a jovens investigadores. Se, logo no seu início, o Governo tinha manifestado satisfação com a saída de jovens qualificados (Miguel Relvas declarou-se mesmo orgulhoso da “nova emigração de jovens bem preparados”), actualmente a FCT vai mais longe ao deixar sem escolha muitos licenciados ou doutorados com altas classificações: só lhes resta comprar bilhetes de ida sem volta. O Financial Times de 16 de Fevereiro fala de “despedidas com lágrimas” no aeroporto de Lisboa, onde por dia “200 licenciados e outros emigrantes abandonam o país”.

De facto, o contraste entre o programa do Governo para a ciência e a sua prática é brutal, surpreendendo quem acreditou nas intenções programáticas. Terá mesmo surpreendido o Presidente da República, que veio declarar publicamente que “há que evitar o enfraquecimento das políticas de investigação e desenvolvimento”. Com o crescimento do sistema nacional de ciência e tecnologia, pretendia-se aproximar Portugal dos países mais desenvolvidos da União Europeia. Desde que em 1995 surgiu o Ministério da Ciência e Tecnologia, esse esforço de convergência deu resultados muito bons, por exemplo, no número de pessoas formadas e no número de publicações científicas (se o primeiro ministro não os conhece, é favor informar-se melhor). Agora, porém, o Governo passou a ver a ciência com outros olhos. Pedro Passos Coelho, insciente dos objectivos e processos da ciência, acha que a investigação nacional não se revelou produtiva e quer enviar os investigadores para as empresas rapidamente e em força. Os matemáticos deverão ir, de calculadora na mão, verificar as contas dos bancos e os químicos, de pipeta em riste, fazer análises nas fábricas. O ministro da Educação e Ciência não parece, contudo, acompanhá-lo: põe a ênfase não na ciência utilitária, dirigida ao comércio e à indústria, mas sim na ciência de “grande qualidade”, ciência de ponta que demora a chegar à economia. O Governo bem poderia chegar a um acordo interno sobre a orientação a dar à ciência. Não é um governo, mas sim um albergue espanhol.

O executivo, honra lhe seja feita, emendou há dias o tenebroso discurso de Relvas quanto à emigração de jovens qualificados. Mas de nada vale ao secretário de Estado Pedro Lomba querer atrair jovens talentos com vistos especiais, quando as bolsas que os permitem aproveitar foram cortadas pelo presidente da FCT, Miguel Seabra. A FCT, com uma insensibilidade à ciência que arrepia ainda mais do que as palavras de Relvas, está a promover o êxodo de investigadores extraordinariamente competentes: uma média de 19 no curso de Física no Técnico já não chega para obter uma bolsa! Quando se chumbam os melhores, falar de qualidade não passa de pura retórica.

Voltando ao programa do Governo, nele se pretendia “instituir mecanismos que dêem voz a toda a comunidade científica nacional”. Contrariando a promessa, hoje essa comunidade não é tida nem achada. Houve até uma tentativa de amordaçamento do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, órgão consultivo que reúne alguns dos nossos melhores cientistas, quando este apontou o desnorte da ciência portuguesa. Que não há uma política clara foi reconhecido pelo dito conselho ao solicitar que o Governo “torne público o seu plano estratégico de fundo, comunicando, clara e atempadamente, as suas políticas à comunidade”. E que a FCT anda ao deus-dará foi outra conclusão do mesmo órgão ao pedir uma “avaliação externa à FCT.” Vamos ver quando e como surgem quer o plano, quer a avaliação.

Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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