Ainda o relatório do FMI

A polémica acerca do relatório que o FMI acabou de tornar público sobre Repensar o Estado está a provar algo que é duro reconhecer: aparentemente, todos achamos que o Estado está bem dimensionado, que não há nada a mudar, tudo corre pelo melhor.

O problema é que temos de viver com o que temos, e, infelizmente, por via da receita (impostos), já há muito pouco a fazer, ou seja, para que o Estado chegue a valores de auto-sustentabilidade, vai ter de reduzir os seus gastos, caso contrário continuaremos na senda do défice, seguido de empréstimos, juros, mais défice, mais empréstimos, espiral de juros e mais pedidos de ajuda internacionais (3 em 30 anos).

E foi isso que o FMI nos fez: custa muito, mas pelo menos alguém de fora condensou num documento de 77 páginas, sem ambiguidades e com frontalidade, o que temos de mudar, provando tecnicamente porquê. O crime de lesa-majestade que o FMI se atreveu a cometer foi dizer-nos coisas tão graves como representando os salários e as pensões pagas pelo Estado 58% dos gastos (sem juros), não existe nenhuma possibilidade de reduzir os gastos do Estado sem lhes tocar, concretizando que, por exemplo, as horas extraordinárias pagas aos médicos têm de ser reduzidas, que a proporção entre médicos e enfermeiros tem de ser revista, que o Estado não pode ter vários sistemas de pensões, que o mérito no Estado não é reconhecido, que temos forças de segurança desproporcionadas para o nosso país, que o número decrescente de estudantes deve significar uma redução no número de professores por aluno, que é das mais altas da Europa (sem resultados na qualidade de ensino), que deve haver uma equiparação com o sector privado no que toca ao número de horas de trabalho semanais (de 35 para 40), que deve haver mobilidade especial, que se devem obter sinergias via partilha de serviços entre os vários organismos do Estado, que a Segurança Social, tal como está, não é sustentável, que o subsídio de desemprego e o RSI, como estão, não estimulam a procura de emprego e criam dependência, só para mencionar alguns exemplos.

E fez mais: identificando as fragilidades, o FMI apontou soluções, que são dolorosas, mas que temos de discutir colectivamente, pois a situação actual não é viável. O relatório é duro, pois não poupa nas palavras. Por exemplo, aponta a redução drástica de pessoas na administração pública (entre 60.000 e 120.000 pessoas) como parte da solução, situação de grande gravidade, pois atrás de cada número está uma pessoa e uma família, mas que tem de ser discutida abertamente, pois esconder os problemas só serve para os tornar ainda mais graves.

A polémica agudizou-se mais quando um membro não político do Governo (Carlos Moedas) não enjeitou o relatório, levando mesmo gente do aparelho do seu partido a pedir a sua demissão, o que é sintomático, demonstrando de alguma forma como pensam em geral os políticos.

E aqui estamos, foi pedido um relatório técnico que chegou a conclusões tenebrosas que, sendo sérios, todos esperávamos. O problema existe e tem de ser encarado de frente, aumentar mais a carga fiscal deixou de ser solução, para o Estado ser sustentável tem de ser repensado nas suas funções e nos seus gastos, tudo tem de ser discutido, não podem existir temas tabus. Dito isto, chegámos ao cruzamento em que os decisores vão ter de decidir se querem ser meramente políticos, evitando temas quentes para chegarem às próximas eleições o mais incólumes possível, evitando assim penalizações eleitorais, ou se, por outro lado, querem de facto fazer algo de muito relevante para o país, mudando o Estado num sentido de estabilidade e exigência.

Um relatório como este, que é técnico, aponta caminhos difíceis, que terão sempre de ser faseados e aferidos nas suas consequências, para a cura não ser pior do que o remédio, e só pode ser implementado por decisores que consigam dar o exemplo, indo muito mais além na racionalização da própria estrutura administrativa do país. Por exemplo, seria perverso reduzir em tal dimensão o número de funcionários públicos sem tocar no número e gastos dos deputados, ainda nada vimos em termos de fusões de câmaras municipais, os políticos eleitos deveriam ter a iniciativa de propor a redução das suas próprias mordomias (como fez Mário Monti, em Itália).

O timing é histórico, agora é que vamos ter oportunidade para ver a dimensão real dos nossos representantes, sejam eles Governo ou oposição.

 

Gestor de empresas

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