Miguel Soares, a malária deu-lhe um galardão e uma bolsa da Fundação Gates

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Miguel Soares Nuno Ferreira Santos

A malária deu-lhe o Pfizer em 2009 e uma bolsa da Fundação Gates em 2010. E já encontrou mais uma peça do puzzle que pode explicar a mortalidade de várias doenças.

Quem é?

Há 15 anos que Miguel Soares abraçou o estudo da inflamação. O cientista de 42 anos que está à frente de uma equipa no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) só trabalha em Portugal desde 2002. Antes, formou-se em Biologia em 1990, na Universidade de Louvain, na Bélgica, onde se manteve até 1994 para completar o mestrado e o doutoramento. Durante estes anos estudou processos de transplantação. Depois, mudou de continente e de tema de investigação. Entre 1995 e 2002 esteve na Escola Médica de Harvard, em Boston, nos Estados Unidos. Aí começou a lidar com nomes e conceitos como o grupo heme, a enzima heme oxigenase-1 ou o monóxido de carbono. Em 2002 iniciou o grupo no IGC, onde hoje estão 13 pessoas. A equipa continua a trabalhar com estas substâncias e a tentar perceber as suas funções durante o processo inflamatório em quatro doenças diferentes: arteriosclerose, a esclerose múltipla, a sepsis e a malária.

O que fez?

A inflamação é o universo da investigação de Miguel Soares. Para perceber melhor, é necessário recordar a última vez que uma abelha nos picou. Quando isso acontece, a região do corpo incha, fica vermelha, quente e dói - é o resultado da inflamação. Este processo que acontece nos tecidos permite o corpo combater infecções ou feridas. Normalmente, a reacção inflamatória pára quando a infecção está resolvida. Mas a permanência de um microrganismo ou uma disfunção fisiológica, como uma doença auto-imune, pode tornar a inflamação violenta ou prolongada, o que causa desde enfartes devido a arteriosclerose até à septicemia.

A equipa de Miguel Soares tem vindo a pesquisar o papel dos grupos heme, os grupos de ferro que existem na hemoglobina - a molécula que permite os glóbulos vermelhos agarrarem o oxigénio para levarem às células. Muitas vezes estes grupos são libertados durante a inflamação e tornam-se tóxicos. O cientista deparou-se com a propriedade protectora da enzima heme-oxigenase-1, produzida nestas situações, que é capaz de degradar este grupo heme e produzir o monóxido de carbono (CO), um gás venenoso que aqui tem um efeito benéfico.

Em 1998, o cientista publicou um artigo na Nature Medicine onde mostrava que os órgãos transplantados produziam heme oxigenase-1 e por sua vez o CO, que travava a inflamação e evitava a rejeição dos próprios órgãos. Estes estudos sugerem que o CO pode ter uma função terapêutica, o conceito está a ser testado clinicamente.

Na última década, já em Portugal, a equipa de Miguel Soares esteve a testar o funcionamento da heme oxigenase-1, para confirmar se é um denominador comum na protecção dos efeitos da inflamação em diversas doenças. Já perceberam as funções benéficas desta enzima e do CO na esclerose múltipla e na malária - que deu o prémio Pfizer a Soares em 2009.

Por que o escolhemos?

Pela consistência no trabalho, ideias originais, prémios e bolsas, o exemplo, vale a pena colocar o foco neste cientista. Se há algo que o trabalho que está a decorrer no IGC demonstra é que um ambiente científico com maturidade, internacional, permite as ideias chegarem mais longe. O trabalho de Miguel Soares respira isso.

O mais recente exemplo é a bolsa que o cientista recebeu este ano pela Fundação Bill e Melinda Gates. Uma aposta de cem mil euros numa ideia para um novo tratamento da malária. O princípio cai ao lado da linha de investigação principal da equipa e vale a pena relembrar.

A mortalidade na malária é maior na faixa etária entre um e cinco anos. É durante esta altura da vida do ser humano que passamos a produzir um anticorpo contra um açúcar que não temos, mas que se encontra no parasita da malária. Miguel Soares acredita que estes anticorpos podem atacar o parasita e reduzir a taxa de infecção e morte, e pensa que, durante a infância, certas bactérias que temos no intestino vão estimulando o sistema imunitário a produzir estes anticorpos. Se este processo for acelerado, seria possível imunizar logo os bebés, evitando uma percentagem considerável de mortes. Esta explicação não está provada. Mas o projecto que chegou à fundação era demasiado arrojado e consistente para se recusar.

O que podemos esperar dele?

Existem resultados novos a sair do laboratório que fazem uma ligação entre a anemia falciforme - uma mutação nos glóbulos vermelhos que dá vantagem na luta contra a malária - e os processos inflamatórios. Miguel Soares também espera encontrar uma ligação entre a heme oxigenase-1 e a arteriosclerose. Caso isso aconteça, é mais um argumento para o que o cientista tem vindo a demonstrar: um sistema que pode alterar radicalmente a forma como lidamos com as doenças e produzir novas terapias que ajudam a salvar vidas.

No projecto sobre os anticorpos e a malária, se a teoria da equipa for verificada, a Fundação Gates pode dar uma nova bolsa no valor de um milhão de dólares para o projecto ser desenvolvido e aplicado. Se não resultar, o cientista está num sítio privilegiado onde pode continuar a surpreender-nos com mais ideias arrojadas. É disso que a ciência vive.

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