Sonda Huygens vai atravessar as brumas de Titã

É um dos momentos altos de uma missão espacial que descolou da Terra a 15 de Outubro de 1997. A sonda europeia Huygens desligou-se da norte-americana Cassini, no dia de Natal, para hoje fazer a sua última viagem: atravessar a atmosfera alaranjada e carregada de moléculas orgânicas de Titã, a maior lua do planeta Saturno, e enviar para a Terra imagens de um mundo que os olhos humanos nunca conseguiram vislumbrar, e que promete ser um laboratório em tamanho natural para estudar a forma como a vida surgiu na Terra. Se esta missão for um êxito, é a primeira vez que um engenho humano toca na lua de outro planeta, e será o local mais distante tocado por um artefacto saído do nosso planeta.

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Titã imaginada por artistas contratados pela NASA NASA

Hoje à noite, os humanos poderão surpreender-se com algo que nunca viram: imagens da superfície de Titã, a maior lua de Saturno e a única do sistema solar com uma verdadeira atmosfera, que deverão ser divulgadas ao princípio da noite. Isto se correr sem problemas a descida da sonda europeia Huygens pela atmosfera muito densa de Titã, a iniciar hoje pelas 09h06. Ao fim de cerca de duas horas e meia, a sonda atingirá a superfície e, com as fotografias únicas que se espera que tire, talvez muitas das especulações sobre esta lua ganhem solidez. Há mesmo lagos de metano? Ou lamaçais, como supôs o astrofísico Carl Sagan?

Os dados recolhidos por sondas como as Voyager 1 e 2, no início dos anos 80, e por telescópios na Terra não permitiram saber com exactidão como é Titã. A culpa é da atmosfera, dez vezes mais densa à superfície que a da Terra, e formada por brumas laranja-acastanhadas muito espessas que não deixam ver nada.

Como um véu, essas brumas são compostas por partículas em suspensão, a que se chama aerossóis. É na formação dos aerossóis que reside um dos grandes interesses de Titã, porque pode dar pistas sobre as condições químicas na Terra antes do aparecimento da vida.

Os aerossóis resultam de uma série de reacções químicas do metano e do azoto, os principais constituintes da atmosfera de Titã (em cerca de dois e 98 por cento, respectivamente), tal como se pensa ter sido a atmosfera primordial da Terra. A destruição do metano pela radiação solar dá origem a moléculas orgânicas cada vez mais complexas de carbono e hidrogénio (hidrocarbonetos), que se juntam em cadeia e formam as partículas em suspensão.

A importância destas moléculas reside no facto de terem carbono, o elemento-chave das células de todos os seres vivos. Por isso, a química do carbono é chamada química orgânica.

Como a atmosfera de Titã é favorável à criação de moléculas orgânicas, pode ser um enorme laboratório para estudar o aparecimento da vida no nosso planeta.

Lamaçal no solo

Por acção da gravidade, as partículas vão caindo até à superfície. Aí, terão o aspecto de um lamaçal. Quem baptizou essas lamas acastanhadas, em 1979, foi o já falecido Carl Sagan. Chamou-lhes, em inglês, "tholins", uma palavra inspirada na grega "tholos", que significa lama. Em português, diz-se tolina. Sagan foi dos primeiros cientistas a tentar reconstituir em laboratório a matéria criada nas reacções fotoquímicas na atmosfera de Titã.

A tolina é uma das coisas que os cientistas esperam encontrar na superfície, através dos olhos da Huygens, conta o astrofísico Alberto Negrão, da Faculdade de Ciências de Lisboa e do Observatório de Paris-Meudon, em França.

Como a tolina está depositada já é outra questão. Se existem lagos de metano, que será líquido devido à temperatura na superfície (180 graus Celsius negativos), então poderá misturar-se. Se a superfície for sólida, poderá acumular-se como lama, já que se espera que nas zonas sólidas de Titã haja gelo de água.

Será tudo isto que a Huygens, da Agência Espacial Europeia, poderá ver na descida. Entre os seus seis instrumentos científicos, um funcionará como os olhos do veículo. A 160 quilómetros de altitude, começará a tirar fotografias e a fazer registos em vários comprimentos de onda do espectro electromagnético, para identificar os constituintes da atmosfera. "Por exemplo, vai tentar identificar nuvens, quão espessa é a bruma e detectar trovoada", diz Negrão.

Lâmpada iluminará mundo sombrio

A 100 metros da superfície, vai acender-se uma lâmpada, para poderem tirar-se mais fotos. A claridade do dia deve assemelhar-se à de uma noite de luar na Terra, devido à opacidade da bruma, e a noite ora é escura como breu, marcada por pontos ténues de estrelas, ora é iluminada por um ponto mais brilhante, Saturno.

Este aparelho também registará outra radiação emitida pela superfície, para identificar os seus componentes químicos. As imagens que recolher serão o primeiro vislumbre deste mundo. "Não se sabe verdadeiramente como é a superfície. Se funcionar bem será fantástico."

Embora sejam uma suposição, há motivos para falar nos lagos de metano misturado com etano. Pelo menos, tem de haver uma fonte de metano na superfície, que o forneça continuamente à atmosfera. Caso contrário, já teria sido todo destruído nas reacções fotoquímicas, ao longo dos 4500 milhões anos de Titã. "Mas não é forçoso que esteja à superfície. Pode estar debaixo da crosta e ser libertado por porosidades na rocha", acrescenta Negrão.

A chegada ao solo, prevista para as 12h34, com uma variação de 15 minutos, dependendo da forma como a atmosfera e os ventos afectarão os pára-quedas, é a parte mais mediática da missão. Mas a prioridade científica, mais do que a aterragem, é o estudo da atmosfera, com a recolha em dois momentos de amostras da bruma de hidrocarbonetos, a medição da velocidade dos ventos ou da temperatura.

A Huygens está preparada para flutuar três minutos e, se cair numa superfície sólida, tem bateria para durar mais tempo. Não se sabe é quanto. "Vamos ver até que ponto resiste a um impacto. Não está preparada para uma aterragem muito dura, é mais para aterrar em lama, numa superfície relativamente mole ou em líquido", diz Tiago Hormigo, engenheiro aeroespacial da empresa Deimos Engenharia. "O sistema de entrada na atmosfera é complexo. É preciso que todos os pára-quedas funcionem na altura certa."

Nunca a humanidade tocou num corpo tão longínquo do sistema solar. O mergulho da sonda Galileu em Júpiter, em 2003, foi o mais distante que fomos. Há muito tempo que não havia tanta expectativa para ver como é o solo de um corpo planetário completamente desconhecido. Mesmo Vénus, cuja superfície também está tapada por camadas de nuvens, já foi desvendado por aparelhos soviéticos que lá aterraram e a sonda norte-americana Magalhães cartografou a superfície com radar, de 1990 a 1993.

"É uma missão de alto risco", resume o astrofísico holandês Maarten Roos Serote, do Observatório Astronómico de Lisboa. "Se correr bem, vamos aprender imenso. Se correr mal, é uma grande pena, porque não voltaremos tão cedo a Titã."

Só às 22h07 a sonda norte-americana Cassini, nas redondezas de Titã a receber as informações da Huygens, completará o envio de todos os dados para a Terra, embora as imagens devam começar a chegar ao princípio da noite. Até vermos uma foto do solo ou das brumas, e com sorte relâmpagos e nuvens, temos de imaginar Titã.

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