A percepção é o que mais ordena no mundo cada vez mais entre o preto e o branco

Há sinais preocupantes, como debates radicalizados no espaço público, que podem levar ao aparecimento de fenómenos nas eleições. Académicos dizem que eleições de 2019 serão um teste à democracia como a conhecemos.

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Os portugueses são dos que mais confiam na UE, mas desconfiam dos partidos daniel Rocha

Na hora de votar o que conta mais: o conhecimento da realidade ou as múltiplas percepções, algumas delas erradas, que se foram construindo, sem que pudessem ser clarificadas? A resposta a esta pergunta de milhares de votos não é de estudo fácil, nem há muitas análises académicas que façam uma leitura directa do que influencia o eleitor na hora de colocar uma cruz no boletim e a sua decisão. As circunstâncias em que as decisões sobre o voto são tomadas mudam a uma velocidade cada vez maior, são muitos os factores que influenciam os comportamentos dos eleitores e os instrumentos usados para propagar a mensagem tornaram-se menos controláveis. Algumas destas incógnitas serão, nas eleições deste ano, um “teste” à resistência do país a populismos, a começar pelas europeias.

“O que vemos no debate público hoje em dia é que os referenciais comuns, que nos permitiram juntar as diferentes percepções e tentar olhar para a complexidade do problema, estão a desaparecer. Está a desaparecer a complexidade e a percepção é cada vez mais dicotómica, simplista, ou é isto ou é aquilo”, explica ao PÚBLICO o professor Carlos Jalali, director do departamento de Ciência Política da Universidade de Aveiro. É a aplicação da lógica do futebol à política, potenciada pelos meios de comunicação social, sobretudo pelas televisões, acredita. “Temos um debate público que tem incentivos a essa simplificação”, que cria uma dinâmica que “mimetiza” os debates de futebol e “gera audiências”.

Mas a culpa também se aplica em igual grau aos partidos por “aceitarem esse jogo de simplificação”. Jalali explica que um dos problemas que levam as percepções a ganhar terreno à realidade - e existem sempre várias verdades - se explica pelo facto de a oposição ser sistematicamente contra o Governo. “O papel da oposição é informar o cidadão para que ele veja a realidade por outro prisma. Se diz coisas completamente distintas todas as vezes, o cidadão não sai mais esclarecido desse debate”, acredita o professor.

O meio é um problema

Esta tendência “polarizadora do debate” tem um efeito centrifugador da opinião. Afasta as opiniões do centro do debate ao mesmo tempo que cimenta as opiniões já existentes, não as expondo ao contraditório de outros pensamentos. Neste caso, um dos problemas é o meio. E o meio é a mensagem, como previa o filósofo o Marshall McLuhan. O meio torna-se um problema porque está a mudar à medida que as redes sociais tomam o lugar dos meios de comunicação tradicionais, fomentando uma lógica de "bolha" e homogeneizando os conteúdos que são disponibilizados a cada indivíduo.

“Formar um juízo sobre a realidade é algo que está necessariamente relacionado com a percepção que se tem sobre essa realidade. Sempre foi assim, mas o que é novidade é que os mediadores tradicionais dessas percepções estão em muitos casos a ser ultrapassados por novos meios (como as redes sociais) ou a ver o seu papel alterado”, argumenta André Azevedo Alves, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. 

Apesar do papel cada vez mais importante das redes sociais, que promovem a “repetição” da mensagem com eficácia e se “tornam uma barreira a que as percepções existentes se alterem” perante o contraditório de outras percepções da realidade, como diz Jalali, os últimos Eurobarómetros ainda mostram que Portugal continua a ser o país em que o meio preferencial de fonte de informação sobre política nacional e europeia é a televisão. 

Além do meio, o conteúdo da mensagem ainda vai permitindo que as percepções erradas sobre a realidade, alimento de populismos, se afastem de temas que têm sido a coluna vertebral do discurso populista na Europa. “Em Portugal, o populismo tem tido até agora um sucesso limitado e maioritariamente à esquerda. Mas a fraca expressão de movimentos populistas à direita terá provavelmente mais a ver com a reduzida expressão de problemas relacionados com imigração ou terrorismo em Portugal”, defende Azevedo Alves.

O apoio português à UE

Significa isso que estamos imunes ao populismo? Jalali acredita que “nada é evitável”, mas temos algumas defesas “que nos têm blindado”. “Algumas alavancas para o crescimento dos populismos, por aqui, não são vistas como problemas. A imigração não é vista como um problema à mesma escala em que é vista a nível europeu e a questão da integração europeia também não é verdadeiramente uma questão. Apesar de haver uma diferença entre os cidadãos e as elites, Portugal mantém um apoio à UE bastante alto”, diz.

A opinião de Jalali vai ao encontro do que diz Azevedo Alves, ao lembrar que “os portugueses continuam a ter níveis bastante elevados de preferência pela democracia e pela integração na UE”. Os dois académicos convergem ainda na opinião de que os portugueses “apresentam um muito baixo grau de confiança nos partidos existentes”.

O minar da confiança nas instituições é um dos caminhos que as percepções podem fazer - e alguns estão a tentar - para tapar a realidade e, com isso, promover um voto menos esclarecido ou baseado em informação enviesada. A profundidade com que isso pode acontecer depende do comportamento de políticos, media e cidadãos. Um pau de três bicos que dificulta uma projecção para o futuro a longo prazo.

Certo é que as eleições deste ano vão constituir um “teste” à democracia portuguesa com a configuração tal como a conhecemos? Vão estas percepções influenciar o voto? “Imagino que sim. Não conheço estudos que façam esta ligação directa, mas obviamente vai ter consequências no comportamento das pessoas, e o voto é um comportamento”, diz Jalali.

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