Carta de despedida de embaixador britânico na UE embaraça May

Numa carta aos funcionários da Representação Permanente, Ivan Rogers pede-lhes que continuem a "desafiar as posições mal fundamentadas e o pensamento confuso".

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Rogers (na foto com Cameron) avisara Londres que as negociações para um acordo comercial com a UE podem demorar dez anos François Lenoir/Reuters

O ano não começou bem para Theresa May – em contagem decrescente para desencadear o processo de saída da União Europeia, a primeira-ministra britânica foi surpreendida pela demissão do embaixador em Bruxelas, que era um dos principais conhecedores da política europeia no Foreign Office. Mas Ivan Rogers não se limitou a sair, fê-lo com estrondo. Numa carta enviada aos antigos colaboradores, a que a BBC teve acesso, o diplomata deixou bem clara a sua frustração com a atitude com que o Governo parte para as complexas negociações.

A sua demissão, a menos de dois meses do prazo definido por May para formalizar a decisão de sair, desencadeou uma tempestade em Londres, com os sectores pró-europeus a acusarem o Governo de hostilizar quem mais poderia contribuir para o sucesso das negociações. Já os partidários do “Brexit” aplaudiram a saída de um diplomata que, afirmam, nunca acreditou que o país pode ter sucesso fora da UE.

Uma inimizade antiga, mas que se tornou mais evidente quando, no ano passado, a imprensa noticiou que o embaixador tinha avisado os ministros que o acordo comercial com a União Europeia poderia demorar dez anos a ser concluído. Este é um cenário referido com frequência em Bruxelas, mas que o Governo britânico recusa sequer abordar, insistindo que será possível negociar em simultâneo a saída da UE e o futuro das relações bilaterais, tudo no prazo de dois anos previstos no Tratado de Lisboa.

No email enviado terça-feira aos funcionários da Representação Permanente, Rogers não aborda directamente estas divergências, mas pede aos colaboradores que “continuem a desafiar as posições mal fundamentadas e o pensamento confuso, não devendo nunca ter medo de dizer a verdade a quem está no poder”.

Abrindo brechas na tradicional neutralidade dos funcionários governamentais, o diplomata dá a entender que, mais de seis meses depois do referendo que ditou a saída britânica da UE, nem sequer a sua equipa “sabe quais serão os objectivos negociais do Governo” para o futuro das relações com Bruxelas. Sublinha ainda que nos quadros da administração britânica “faltam pessoas com experiência em negociações multilaterais, ao contrário do que acontece na Comissão Europeia e no Conselho”, com quem Londres vai negociar e acrescenta: “o Governo só vai conseguir o melhor para o nosso país se recorrer à melhor experiência que tem ao seu dispor”.

Rogers, que foi conselheiro do ex-primeiro-ministro David Cameron para os assuntos europeus e representava Londres em Bruxelas desde 2013, sabia já que não iria permanecer no cargo até ao final das negociações (o seu mandato terminava em Outubro). Mas a sua saída antecipada e, sobretudo, a forma como se despediu agrava a sensação de desnorte em Londres a tão pouco tempo de iniciar as complexas negociações com a UE.

Ian Duncan Smith, o ex-ministro da Segurança Social que é agora uma das principais vozes em defesa de uma saída incondicional da UE, acusou o embaixador de ter tentado sempre encontrar mais obstáculos do que soluções para o sucesso das negociações e afirmou, numa entrevista à Sky News, que o Governo há muito tinha perdido a sua confiança nele, atribuindo-lhe várias fugas de informação. Já o antigo líder dos liberais-democratas, Nick Clegg, afirmou que a demissão é o resultado da hostilidade reservada a todos os que avisam que a saída da EU não será tão simples e indolor como o Governo promete. “Primeiro foram os juízes, condenados como inimigos do povo por se terem limitado a fazer o seu trabalho […] agora são os funcionários injuriados pela imprensa do Brexit depois de Ivan Rogers se ter limitado a alertar de forma franca sobre o tempo que negociações podem demorar”, disse o antigo vice-primeiro-ministro ao Guardian.

Ignorando os apelos da ala eurocéptica do seu partido, que pedia um nome que fosse claramente favorável à saída da UE e alguém externo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, May escolheu para o cargo o Tim Barrow, um diplomata de carreira que foi até 2015 embaixador em Moscovo. Actual director de política do Ministério, tem vasta experiência em Bruxelas, onde foi primeiro secretário da Representação Permanente, escreve o jornal Guardian.

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